
segunda-feira, 10 de março de 2008
O que foi feito de Vera - Elis Regina
O que foi feito da vida, o que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás
Falo assim sem saudade, falo assim por saber
Se muito vale o já feito, mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor
prosseguir
Falo assim sem tristeza, falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer
Nós iremos crescer, outros outubros virão
Outras manhãs, plenas de sol e de luz
Alertem todos alarmas que o homem que eu era
voltou
A tribo toda reunida, ração dividida ao sol
E nossa Vera Cruz, quando o descanso era luta pelo
pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé
E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz
Hoje essa vida só cabe na palma da minha paixão
Devera nunca se acabe, abelha fazendo o seu mel
No pranto que criei, nem vá dormir como pedra e
esquecer
O que foi feito de nós
Legião Urbana - Monte Castelo
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos
dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
quinta-feira, 6 de março de 2008
O grito - Trecho Clarice Lispector
Meus sonhos - Trecho Clarice Lispector
quarta-feira, 5 de março de 2008
O Nome da Flor - Daniel Donson
Costumava viver apesar de. Apesar de, acordava às 6:00,
Apesar de, cuidava dos filhos, Apesar de - respirava.
Mulher da lida, no corpo havia fadiga.
Os olhos denunciavam que ela não sabia gritar.
Mulher de Atenas, a típica Helena, que dá e nada pede,
Cobiça a liberdade na intimidade de seu leito.
Seu marido a machucava, ora com tapas, ora com socos.
Mas nada doía mais do que quando ele subia em cima dela.
Ele queria fazer o tal "negócio", logo depois dormia.
De modo que ela morria simbolicamente todos os dias.
E ele, vivia por ser charlatão, porque tirou dela seu senso.
E o senso era sua singular estado de estar-no-mundo.
Até que do âmago dela nasceu o grito.
E o grito desencadeou a fuga.
E ela se viu como quem, de súbito, entende um truque.
Achou que poderia pensar sozinha, se ninguém estivesse olhando.
Não era inteligente, não era bela. Já era velha.
Mas tinha o coração selvagem de um potro novo.
Pegou seus filhos, em tenra idade, e fugiu para a grande cidade.
Nas cozinhas de restaurante aprendeu a se suster.
Não era civilizada, mas sabia rezar. Aprendeu a se virar.
Lutou dentro da selva de pedras em que passou a morar.
Descobriu que se bastava, que tinha um começo, um meio e...
Não vivia mais apesar de - agora era plena, sentia o gosto.
Não provou do amor conjugal, mas amou ser uma vez livre.
Livre feito a borboleta branca de seu jardim.
Sim, agora ela cultivava flores.
Assim, ela deixou de ser anônima.
E quando se olhava no espelho, chamava-se por um nome.
Nome que a todos fez conhecer.
Então, já com os filhos crescidos, observou os anos idos...
As dores e dissabores.
Sentiu uma força irradiar de dentro de si - era sangue.
Eram pulsações de felicidade, de gozo. Tinha um nome e tinha filhos!
Também não era solitária porque tinha amigos.
Como estava farta de vida, logo partiu.
E como a primavera, ela se deixou cortar,
Para poder voltar ainda mais forte.
De modo que ela nunca propriamente morrerá.
Quem experimenta liberdade, não costuma morrer.
Apenas deixa de existir por sucessivos momentos brancos.
Logo emerge para conflagrar os renovos da estação.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008
Últimos Presságios - Daniel Donson
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
Aborto da Vida? - Daniel Donson
Em contrapartida, a vertente oposta alega que nenhum indivíduo tem o direito de tirar outra vida – os mais sensacionalistas vociferam ainda que independente da circunstância e do tempo de gestação do feto, quem opta pelo aborto não passa de um homicida. Este argumento parece alcançar abrangência massiva por ser naturalmente irrefutável ante os liames mais conservadores de uma sociedade.
Há também quem faça crer que tempos modernos, onde o contato sexual passou a ser a premissa, o teste drive para analisar a adequação do corpo ao “amor” que as pessoas possam vir a sentir futuramente, exige soluções modernas e imediatas para imprevistos desta magnitude. Não sou tão arbitrário, mas também não sou liberal. Acredito que é melhor antever o ato para que ele não se transforme em fato.A discussão sobre o aborto é sim pertinente, mas completamente superficial. O problema não está propriamente no ventre de quem quer que seja, e sim, na forma de ser-no-mundo de cada indivíduo. Sou a favor da vida. Sempre! Entretanto, não posso deixar de notar que muitas pessoas estão mortas e não sabem. E, paradoxalmente, se questionam se querem ou não dar a luz cada vez que forem “iluminadas”.
Observando por qualquer viés, não concebo que alguém que não ame possa dar a luz, assim como não concebo que alguém que não ame possa ser feliz. A vida está vilipendiada, pois todas as pressões pessoais e sociais cooperam para a padronização de um comportamento, de um estilo de vida da qual sabemos que absolutamente ninguém sairá vivo.
“A verdade é que os seres humanos não têm bondade, nem fé, nem caridade, senão o necessário para aumentar o prazer do momento. Caçam em matilhas. Suas matilhas percorrem o deserto e dispersam-se, ladrando, pelos ermos. Abandonam os que tombam. Estão caiados, disfarçados”. Vigínia Woolf – Mrs. Dalloway.
Não sou pessimista ou tendencioso a este ponto, mas a “modernidade” prega a falta da tradição, e, implicitamente desvaloriza a instituição familiar. Não teríamos tantas meninas mães, tantos destroços emocionais, tanta mediocridade e tanta promiscuidade se fôssemos só um poucochinho mais caretas. Mas quem consegue conter a volúpia da juventude? Os corpos estão em constante ebulição, sedentos pelo prazer transitório e sem compromisso.
Freud já dizia que o menino é o pai do homem (no sentido existencial), e por isto, o homem de amanhã será o reflexo ou os cacos do homem que ora está em construção. Em suma, tenho para mim que a mulher não é um depósito de esperma e, ser macho e viril não é sinônimo de cruzamentos mil. Portanto, tirando os casos extraordinários, a solução ideal para resolver de vez este paradigma é fazer com que as pessoas gostem mais de si mesmas, respeitem mais seus corpos, pois somos exatamente o que aparentamos ser. Afinal, ninguém está na nossa pele para descobrir quão densas e profundas são nossas raízes.
É a Carne Negra - Daniel Donson
Sabemos que a pluralidade é a lei da terra. Ouve-se por aí que todos nós somos iguais, e não há motivos para se ter ‘pré-conceitos’ para com outros serem humanos, especialmente com os negros. Que bonitinho! E foram felizes para sempre. Ainda bem que nos resta certa utopia sobre nossa existência, pois alivia momentaneamente o fardo pesado das injustiças que nos são acometidas das mais diversas formas no decorrer da vida. Que ninguém me leve a mal. Estou tentando ser simples, casual e levemente risonho mesmo não escrevendo sobre o arco-íris e sua luz iridescente, posto que este existe e permanecerá existindo independente das palavras.
O que precisa ser mudado, precisa ser também exposto. Antes o sofrimento legítimo do que o prazer forçado. O que estou tentando articular é que as coisas não estão tão boas assim. Embora a apartheid tenha acabado, reside em nós, negros, grande insatisfação e vou tentar contar o porquê. Começamos pelo nome. Por que a palavra negro é sinônimo de coisa ruim? Veja bem, temos a Peste Negra, a Magia Negra, O lado Negro… Enfim, este adjetivo está intrinsecamente ligado a algo ruim, medonho. Trata-se de uma opinião pessoal: prefiro o adjetivo preto, porque este ainda está livre de associações e é minha cor favorita. Ontem eu estava indo ao Centro Cultural de minha cidade, afim de devolver uns livros e inevitavelmente passo por um bairro de classe média-alta. Aquelas casas valem no mínimo cem mil reais e elas sempre têm dois carros na garagem.
Uma bela mulher de uns trinta anos abriu o portão eletrônico de sua mega-residência para colocar seu carro na garagem; devia estar em horário de almoço. Coincidentemente, eu passava pela sua calçada, cantando na paz. Ela falava no celular e não entrou de pronto. Quando eu estava preste a passar por debaixo de seu portão, a mulher deu uma arrancada com tudo. Então eu disse: “Sua bruxa, não vou te roubar!”. Acho que ela não ouviu, mas quase me atropelou. Acho que ela imaginou que eu iria roubá-la, depois estuprá-la e deixá-la sem carro e sem seus preciosos bens. Sou obrigado a concordar com Nelson Rodrigues: “Hoje em dia é muito difícil ser honesto. Todas as pressões cooperam para nosso aviltamento pessoal e coletivo”.Eu nem usava roupas de mano, não estava que nem um “ligera”, mas mesmo assim, o que fez com que ela pensasse que eu entraria? Os três P´s: Preto = Pobre = Peão. Acho importante compreender ambas as partes. Tentei estabelecer alguma comunicação com a mulher, mas sem êxito infelizmente. Como sempre a pessoa se esconde atrás dos seus altos muros, fortaleza segura. “Às vezes podemos tratar os outros como pessoas e só receber coices, traições e abusos. Concordo. Mas pelo menos contamos com o respeito de uma pessoa, nem que seja apenas uma: nós mesmos. Não transformando os outros em coisas, defendemos pelo menos nosso direto de não ser coisa para os outros” (Fernando Savater, Ética para meu filho).
Inquestionavelmente, tenho livre arbítrio. Eu poderia ser exatamente a imagem que a sociedade pinta que sou. Você pensa que eu não tive acesso ao tráfico? Vamos à minha vila, vou te mostrar. Mas eu seria apenas another brink in the wall. Temos poucas armas para lutar contra o preconceito, e para ajudar grande parte de nossos irmãos correspondem às más expectativas, o que faz com que nossas respostas amigáveis não tenham a menor expressão, sendo apenas vociferadas através da violência. O bom do universo é que algumas existem com uma precisão absoluta. Hora ou outra vemo-nos sem defesa frente a nossa própria verdade.
“… de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão como um ruído oco. E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada chorava em silêncio para não morrer”. (Uma aprendizagem – Clarice Lispector)
Quem não é negro, não sabe o que é ser negro. Na escola, no trabalho, na igreja. Se não nos isolarmos em nossas próprias comunidades, cultura, música e amigos como viveremos, pois? Não temos nenhuma afinidade com outra classe, somos ligados em nós mesmos. Somos nossa própria ligação com o mundo. “… Já eu não tenho classe social: A classe alta me acha um monstro, a média morre de medo que possa desequilibrá-la e a baixa nunca vem a mim”. “Todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial”. (A hora da estrela – Clarice Lispector)
Sou absolutamente a favor das diferenças. Um mundo igual, de pessoas iguais – coitado dos arianos – com as mesmas praças, as mesmas flores, o mesmo jardim, deve ser tremendamente insuportável. Porque o delicado essencial não estaria presente. E o delicado essencial consiste em saber que respiramos num mesmo corpo, composto por membros de funções heterogêneas, mas indispensáveis. A raça negra jamais permaneceu intacta no meio das erosões provocadas pelo ato de viver. Isto apenas fortalece minha tese de que se não houver compreensão, tolerância e comunicação, logo, não haverá vida, nem o delicado, nem o abrupto essencial que é a tênue linha que nos distingue dos vegetais. Respiramos como eles, mas não somos apenas matéria orgânica que um dia adubará o solo.
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
Leitura Íntima - Daniel Donson
Mas nenhuma data traz mais esperança do que o dia vinte e cinco. É bem verdade que no fundo da alma, todo mundo é um pouco triste e um pouco só. Entretanto, a esperança implacável implícita neste dia, nos faz transcender os sentidos físicos, limitações emocionais e enxergar algo além: o imaterial, o intangível – o sonho.
“Margarida a Violeta conhecia. Uma era cega e a outra bem louca vivia. A cega entendia o que a doida dizia. E acabou vendo o que ninguém mais via”. (Perto do Coração Selvagem – Clarice Lispector)
Compreensão, aproximação, união... São palavras intrínsecas a esta época do ano. Através de Margarida e Violeta é possível sentir de forma sutil que vale a pena permanecer de peito aberto independente das adversidades. Em detrimento da pluralidade das tradições religiosas multifacetadas, que estão mais em decadência do que nunca devido à ideologia massificada de consumo, devemos sim acreditar em Cristo – o Alfa, o Omega, o Messias – dar-lhe os parabéns – porque ele vive – e reconhecer nele a abundância colossal de um de um sentimento tão simples, tão solícito, tão altruísta e delicadamente essencial: O amor.
A legitimidade e necessidade de se amar é incontestável, embora haja certa carência de amor na Terra. Nenhum sofisma, ceticismo ou niilismo é capaz de refutar os benefícios adquiridos por aqueles que não desistem de amar. Refiro-me ao amor ágape, incondicional e desinteressado. Aquele que não se ufana, não se inflama de ciúmes, não se porta inconvenientemente, nem trata com leviandade. O outro amor é perecível e nocivo, pois de repente transforma-se em ódio por qualquer circunstância exterior. O verdadeiro amor não se apaga, não se torna obsoleto e é a raiz secreta da felicidade, da busca de... Sim, da busca de.
Especialmente no natal, todos parecem despender um pouco mais de amor do cofre e não se sente a poluição do ar como de costume. Suponho que seja pelo fato de que as coisas que realmente nos asfixiam e contaminam não estão do lado de fora, estão no recôndito do coração, nas avenidas ocultas dos que tem vida interior ativa.
Somente nesta ocasião somos tão induzidos a prestar atenção no nosso próprio reflexo, a nos observar como se estivéssemos em outra pele, a mergulhar no introspectivo para procurar subjetivamente razões objetivas para se viver e viver.
Encontrar o equilíbrio desejado e decidir ser feliz aqui e agora, não abandonado por completo a doce ilusão de que a plenitude está escondida no futuro, no amanhã – o pote no final do arco-íris.
Por tudo no universo ser uma grande verdade inventada, é fundamental permanecermos crendo no tudo e otimizando a todos. Chega de dizer. Está quase na hora da língua descansar. Hora de sentar, pensar e silenciar. O silêncio que é a oração dos sábios, sempre fala muito mais. O silêncio que é sempre uma conversa consigo próprio, um diálogo construtivo entre os muitos entes que nos compõe, uma autêntica leitura íntima.
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Encontro Marcado - D. Donson
Entôo um novo cântico, uma nova canção que esteve muito tempo ausente dos meus lábios. O amor está presente, como sempre. Não saberia descrever com exatidão o tipo de amor que estou me referindo. Apenas sinto que o amor é um dom que não se apaga, não se ufana, não trata com leviandade, não se infla com a inveja, não se ensoberbece, não é inconveniente. Um sublime e incorruptível dom. Algo que ultrapassa inclusive a palavra, posto que há carência de palavras inventadas que o descrevam com exatidão, com exímia exatidão.
Meu maior conflito é travado entre meu osso e minha medula, indo até o interior de meu coração e depois nas fortalezas de minha mente plangente. Apenas sei que meu labor consiste em pensar, em questionar-me e estas veleidades transformam-se nas muitas perguntas que ninguém até hoje ousou responder. Entretanto, não irei mais complicar aquilo que é demasiadamente simples. As coisas que já aprendi. Renato já disse que são as pequenas coisas que valem mais. Estou acreditando em mim novamente, me darei outra chance. Por que as pequenas coisas para mim, já são acessíveis e, o resto é pura efemeridade. Esta medíocre busca adicional que culminará em outras perguntas e estas, certamente me matariam – literalmente.
Vou tirar esta caiada do rosto, verei claramente novamente e aquilo que agora está oculto, se manifestará para glorificação de um plano mais elevado. Sei bem que aqueles que lêem minhas palavras confusas – se é que existe interlocutor, pois faço disto uma conversa totalmente impessoal e restrita entre meu ente mental, um psicanalista nato, provido de um intelecto racional e material e meu ente emocional, um coração metafísico que não desiste de achar o caminho certo e desconsiderar os aspectos niilistas da vida – certamente acreditam que a razão leva a compreensão de todas as coisas. Bobagem! Tais verdades são como as ondas do mar, que são reféns do vento e são levadas cativas aonde quer que ele vá.
Busco algo maior. Busco estar perto do coração selvagem da vida, porque concordo com a Clarice, liberdade para mim é pouco. E não terei medo de homilias atípicas que usarei para dublar o que está sendo traduzido em mim. Outra forma de ter é desejar de todo o coração e também crer que o silêncio que naturalmente trazemos dentro de nós, não é a resposta ao nosso mistério e sim, a projeção da pergunta que cedo ou tarde será respondida. Guardo em mim o grito de um mundo inteiro. E não é fácil segurar a verdade do mundo dentro de mim. Sim, à Clarice. Concordo com o fato de que todo ser humano é um pouco triste e um pouco só. E a admiro por falar sobre nossos lobos tão abertamente, claro que utilizando o subterfúgio dos seus personagens, mas quem não usa de personas para encarar a vida?
Mas um dia, um belo dia, acontece isto a toda criatura: "(...) De repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão como um ruído oco. E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada chorava em silêncio para não morrer". (Uma Aprendizagem)
Simplesmente, após isto ter me ocorrido, não sinto falta da minha máscara. Sinto-me vivo, intrépido, revigorado, como vinho novo, sabe? Isto se deve ao fato de eu ter inclinado os meus ouvidos para ouvir o que naturalmente não consigo. Abri os olhos do meu coração para enxergar o que o físico se recusa a me mostrar. Como a Violeta e a Margarida:
“Margarida a Violeta conhecia, uma era cega a outra bem louca vivia, a cega entendia o que a louca dizia, e acabou vendo o que ninguém mais via." Compreendeu?
Estou em constante sinergia com este verso: “... Todos nós somos um (unidade) e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial”. (A hora da estrela)
E se há algo que eu possa fazer por mim, é não perder meu delicado essencial. Não quero ter o mesmo fim que o Cidadão Kane, e observar que após uma vida inteira tratando as pessoas como coisas e obtendo lucro através disto, depara-se com a face sombria e irreversível da morte, constatando que o único momento de genuína felicidade foi quando sua mãe lhe empurrava no velotrol – a infância que guarda a fantasia do perfeito. Ele perdeu seu delicado essencial. Tratarei de ser exatamente como o que sou. Não viver na linha do arbitrário, do estóico e inflexível.
Mas dançando no escuro, sem medo de cair, confiando na força maior que não posso ver, apenas abstrair. Dançarei sob o sol da meia-noite, em saltos sincronizados, herméticos e meticulosos para desarticular a escuridão e inventar uma nova relação com o tempo. Sei estou meio cansado, não posso negar. Contudo, não me permitirei escolher novas máscaras. Sei que este é o primeiro ato voluntário e solitário do homem, mas quero me habituar a olhar no espelho e além de me reconhecer, quero acreditar na minha limitação, na delineação da minha figura e me dispensar um sorriso sincero, alvo, reconciliatório até. Pagarei o preço, transportarei os montes com expressão iridescente. Já ouço as vozes sibilantes que me motivam e encorajam a prosseguir, em detrimento de todo obstáculo. E de qualquer luta ou descanso, me levantarei forte e belo como um cavalo novo.
quarta-feira, 28 de novembro de 2007
A Hora do astro - D. Donson
E foi numa destas muitas noites mórbidas, frígidas e soturnas que o relógio marcou o exato momento da despedida de um dos meus. O círculo peculiar de pessoas que naturalmente nos cercam – querendo ou não, a pluralidade é a lei da terra – o círculo começou a andar. Sim, digo círculo peculiar porque este é meio quadrado, entende? Na verdade ele é mutante, sem forma fixa, sem identidade definida. As cortadeiras, como de praxe, não tardaram a chegar com seus sacos de lágrimas na mão para iniciar sua verossímil missão: chorar.
Resisti ao máximo para não exteriorizar o breu e a neblina que de súbito observei dentro de mim. Saiba que não tenho medo dos fortes ventanias, nem das tempestades aterradoras, porque eu também sou a escuridão da noite. O que de fato me intriga e me incomoda até a medula, é o barulho uníssono das vozes insólitas e dissolutas que permeavam o ambiente.
Eles jamais poderiam imaginar que uma forma infalível de se ter, é não desejar, e apenas acreditar que o silêncio contido naquele caixão é a resposta ao grande mistério da vida. Seria surpreendente se todos descobrissem que não há nada a ser descoberto. O que é factível é somente o que os nossos olhos podem alcançar. Deve ser um ultraje ou um apelo a vaidade intelectual do homem crer que todas as coisas são exatamente o que elas aparentam ser e que a morte nada mais é do que a cobrança dos juros do efêmero contrato que assinamos quando resolvemos por a cara neste mundo.
Compreendo que a dor da saudade deva ser latente nos pobres corações – o que não concebo é o porque tanta estima, tanto esmero não é expresso enquanto ainda respira o falecido.
Nas tardes vazias, no ócio da palavra amiga que constitui a amarga solidão, onde estavam estes que agora lhe tocam a mão?
Nos natais triviais, no inevitável dia dos pais, onde estava seu círculo quadrado que agora exige mais e mais?
Da minha poltrona confortável eu tinha uma visão panorâmica e privilegiada. Cada olhar furtivo, cada gesto meticulosamente premeditado, cada palavra afável e ao mesmo tempo contrabandeada, tirada do intransferível acervo pessoal daqueles que amam em secreto.
De que ainda aplaudir o artista quando este já está fora de cena? De que adianta dar a ele mil rosas roubadas em prova de sua importância, quando este já foi habitar nos campos santos?
Porque não reconhecer a luz de um astro quando ele ainda existe e seu brilho ainda se espalha? Já não há mais poesia e nem prosa que possa refletir com exímia perfeição a luz que agora se apagou. E como diria Clarice: “quem não é um acaso na vida?”.
Quanto a mim? Fiquei oco, plácido e impassível. Com um sabor nostálgico na boca do que poderia ter sido e não foi. Fiquei ali, querendo dar arrivederte e ao mesmo tempo segurando a explosão. Acho que foi a rica paz que invadiu minhas fortalezas, e efusivamente evitou a guerra.
Expressei-me através da inexpressividade, meu silêncio falou bem mais.
Não posso esquecer que também faço parte deste círculo meio quadrado e vicioso.
Sim.
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
Enganei o bobo - D. Donson
Meu sobrenome é, e permanecerá sendo intensidade. Nasci assim: inflamável. Portanto, se meu doce jeito de ser não lhe agrada, sei fazer pirofagias, cuspo fogo e mando você para o lugar que você mais gosta de estar, compreende? F....-se!
Não preciso de metáforas para te resumir: uma bela criatura que anda errante, nômade inconstante que não se fixa em canto algum e vive sempre querendo voltar atrás. Um olhar tão singelo, tão amável que por um momento me lembrou a inocência que a tanto já perdi. Sinto sua falta, linda.
Tenho a mesma durabilidade que o fogo. Enquanto o vento sopra, estou em combustão. Cessou-se o vento, logo, deixo de existir. Fui forjado no fogo, como uma arma de guerra apta para toda e qualquer batalha. Estou sempre de olhos bem abertos, buscando loucamente uma visão mais ampla e mais fidedigna com a realidade que gosto de construir. E qual problema? Se não gosto de alguma coisa, tenho o direito de ao menos concebê-la de uma outra maneira para mim. Estou aprendendo a brincar de bola, sem bola, porque odeio futebol! Que todos aqueles idiotas quebrem suas canelas, porque as minhas já vieram quebradas.
Depois me chamam de louco: vê se sou eu quem paga milhões para um (sem adjetivo) ficar correndo atrás de um objeto redondo que passa daqui para lá e de lá para cá. Que as minhas pragas fiquem só no papel, não quero ter os estádios contra mim. Eles provavelmente nunca me lerão, mas estou disposto a me desculpar, sem partir para a força bruta, é claro. Esta que também não é meu forte.
Estou de mau humor, me perdoe paciente leitor – se agüentou meu pragmático desabafo até aqui, você merece um beijo na boca que certamente não darei porque nem me olhei no espelho e nem escovei os dentes, acabei de despertar para fumar um cigarro e este não é meu único vício nestas madrugadas soturnas.
Fatalmente, tudo é “por enquanto” e, nada é “para sempre”. Por que isto tem que ter sempre uma conotação sentimental? Nada do que está escrito aqui precisei sentir para escrever. Apenas imaginei que sinto, assim como imaginei que te amava. É assim que eu funciono: Um espelho fiel que te reflete, e por causa disso te incomoda. Eu queria ser bonzinho, queria ser um diminutivo pacato e risonho, até mesmo vilipendiado. Não sirvo. A minha existência começa por mim, estende-se até...chegar em mim novamente.
Gostaria de dividir-me em dois, como não posso quero dividir minha falta de criatividade, minha viral ansiedade, minha múltipla personalidade, meu eu massificado e multifacetado com você. Para tanto, preciso minimante de um sorriso seu. Daqui a pouco o relógio marcará 5:00 horas e precisarei levantar. Mas estarei contanto as horas, no intuito de... mudar meu sobrenome para um outro que você possa compreender e pronunciar com mais facilidade. Não quero me fingir de bobo, pois, no fundo no fundo eu sou mesmo, também faz parte da minha enigmática natureza.
Dia de Introspecção - D. Donson
Quis me dar uma chance para desabafar.
Porque tudo é tão inconstante
E de uma hora para outra tudo pode mudar?
Hoje, segurei-me um segundo,
Não quis mergulhar mais fundo neste mar de ilusão.
Por que, se tão belo é o mundo,
Não concorda comigo, não me dá a razão?
Bem sei que até hoje nada sou.
Também sei que de tudo, mais peço do que dou.
Porém, se alguém me quer bem,
Apenas creia em meus sonhos, não são coisas do além.
Se por fim, como neste prelúdio,
O verbo ou o gerúndio não tiver ocorrido,
Quem sou eu afinal? Como o lírio do campo,
Dilacerado pelas daninhas? Antes tivesse eu nunca nascido.
Ainda me resta o amanhã, e quem sabe o que há de ser?
Somente desejo copiosamente aprender a viver.
Assimilarei as regras do jogo, construirei meu próprio palco.
Farei do medo, um salto.
Das chances, a cena.
E finalmente, sei que tudo valerá a pena.
sábado, 17 de novembro de 2007
O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo a roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou - "Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte ...
Provocações - Luís Fernando Veríssimo
Isto - Fernando Pessoa
Tudo que escrevo.
Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
Uma nova tela - D. Donson
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
Rifa-se um coração - Clarice Lispector
Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste
em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um
pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que
Tim Maia estava certo quando escreveu...
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero,
é isso que eu espero...".
Um idealista...
Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva
a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando
relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste
em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo
em nome de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que abre
sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para
quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer
para São Pedro na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir.
Eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer"
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por
outro que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate
tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda
não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio,
sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence
seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Medo - D. Donson
Quando o sol vai embora, e a noite anuncia as horas de trevas, ele começa a invadir meu quarto como a fumaça densa de uma fogueira acesa em minha porta. Sequer pede licença, simplesmente entra como se conhecesse cada milímetro da minha fortaleza. Não há como escapar. Concluí que ele já deixou de ser um agente externo e transitório para fazer parte de mim. Assim como uma parasita se alimenta de seu hospedeiro, o medo suga minhas energias e meu direito de pensar livre de sua influência. Algumas coisas que tenho medo são irreveláveis, outras, somente compreensíveis.
Tenho medo de não acordar, do sopro da vida deixar meus pulmões enquanto ainda repouso da fatídica missão de continuar a viver, cada dia de uma vez – e o maldito calendário me engana, me confunde e me aliena do tempo e do espaço do qual faço parte.
Tenho medo de gente, porque nenhuma gente é genérica e padronizada, o que me faz tentar abstrair uma série de comportamentos e realidades totalmente diferenciadas e distintas uma das outras. Eis outra fatídica missão: sociabilização. Desde que entrei na sociedade deste planetinha, tenho tentado ser comum – agradeça se você é comum e possui uma ‘comunidade’, pois este nome denota uma comum unidade, o que eu desconheço por força das circunstâncias e da natureza. – e por várias vezes me adequar aos valores e tradições que ela prega, mas que ironicamente se contradiz. De que me adianta a tal civilidade? Que ninguém se engane, a minha simplicidade artificial é uma luta ferrenha entre a expressão e o entendimento. Ser comum é maravilhoso! A excentricidade é minha grande inimiga, é a sombra que corre ao meu lado, em constante sinergia com a minha dúbia, mas afável presença.
Tenho medo de contemplar a destruição de todas as coisas que acredito. Mais ainda, das coisas que amo. Sim, pois se há algum antídoto para o medo e se alguma virtude realmente possui poder transformador, esta é o amor. Isto seria o fim da estrada, o fim da ideologia, da sublime vocação. A ideologia é a única coisa de valor em um homem, posto que todo homem é miserável por si só e, portanto, se alimenta de uma, criada por si ou dada por terceiros. Há um fragmento irrecobrável no âmago do ser humano. Acha ele, em sua tola e vã superstição que perdeu algo em algum lugar. Verdade é que nunca esteve com ele, apenas uma ideologia pode persuadi-lo a crer que o que busca está escondido atrás do relógio, então ele passa a vida toda crendo que quanto mais o ponteiro gira, mais próximo fica o seu glorioso futuro e o encontro com o saudoso fragmento - utopia. Somente assim se consegue nelsonrodrigueseanamente encarar a vida como ela é.
Eu tenho medo acima de tudo de mim mesmo. Não tenho medo do diabo ou daquilo que não é tangível. Contudo, meus lobos vivem guardados numa caixinha compacta, ávidos por uma insólita oportunidade de mostrar as suas garras a platéia, que quer mais é pão e festa. Minha autopsicanálise culminou num pragmático senso de ridículo, que me acusa de maneira julgadora e inapropriada. Meu lado pessoal tornou-se impessoal, meu inimigo mortal é meu lado fatal. Meu fatal lado esquerdo, como diria Drummond. É nestas horas que eu resolvo hibernar, como um urso safado que espera a pior estação passar para somente então ir à caça.
Tenho medo essencialmente do frio, porque ao certo não sei, mas ele me remte uma nostalgia intimista e retrógrada, como se fosse necessária várias vidas, vários ambientes, várias cronologias para eu conseguir o que realmente desejo. O que desejo? Esta é a pergunta mais evasiva e recorrente que me faço quando o sol reaparece, acho que desejo respostas. Desejo ser intrépido o suficiente para escolher o que desejar e não ter medo conhecer o que ora se não é manifesto. Desejo acertar não o alvo que os outros não conseguem, e sim, o alvo que eles não podem ver.
Definição - D. Donson
Isso sou eu:
Um fragmento em busca da outra parte,
Um nome que ninguém sabe pronunciar,
Uma língua sem tradutor algum,
Uma força da natureza, perdida no cosmo das ilusões.
Isso sou eu:
Uma pergunta sem resposta,
Uma casa feita na areia,
Uma falta de estrutura,
Uma sede insaciável.
Esse sou eu:
Aquilo que eu nunca fui,
As coisas que poderia ser,
Aquilo que ainda serei,
Um conjunto de virtudes.
Esse sou eu:
Um séqüito de mistérios,
Um coração amoroso,
Uma mente perigosa,
Uma mistura de gostos.