segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Rezar para dormir - D. Donson


Como poderia eu, que nunca fui ao analista, me libertar do que eu fui no instante passado e de repente agora percebo que não o sou mais? Bem mais do que isso: não quero ser uma dessas vidas que caminham a esmo sobre a Terra sem nunca se questionar o porque se deve continuar a caminhar. Paro agora para um café, é bem noite e aceitei que terei insônia.

Voltei. Talvez aceitar a minha insônia seja uma forma bem secreta de esperar que o sono venha por si só. Enquanto acordado, penso em palavras. Penso em palavras o tempo todo, no entanto, a palavra correta não me ocorre. A palavra para o que eu sou simplesmente está escondida em algum deserto remoto da minha existência passada ou atual, e é um calvário até o seu encontro. Morro bem mais do que uma vez, morro e renasço concomitantemente.

Tento voltar mais pronto, tento voltar a ter a expressão genuína do meu melhor modo de ser, da minha ânsia por uma novidade de espírito, da descoberta fatídica de que só tenho uma chance, da sabedoria quase sublime de que jamais amarei alguém da forma como amo esse ser que de relance cruzou meu caminho e, de relance novamente, soube que era o meu desafio, era a extensão da minha experiência romântica. Por isso, mudamente, tenho feito orações. Acredito que o silêncio também seja uma voz poderosa, a voz de Deus. E ouvir esse silêncio talvez me leve à compreensão de mim mesmo, desse amor que sinto e muitas vezes me arranha por dentro.

Quem sabe toda vida não esteja mesmo precisando de uma boa dose de silêncio para ouvir o que, na insanidade cotidiana de carros, cavalos e trombones, passa desapercebido. O essencial é um relance só visível ao olho apto a ver a vida que acontece nas minúncias, no orgânico da natureza. E faço disso tudo a minha oração mais primitiva, o meu ritual de catarse, de purificação. Que a palavra traga à existência aquilo que não existe, dentro e fora de mim. Que tudo se esclareça se na loucura obstinada de ser quem eu sou eu resolver sentar um pouco para pensar e sobriamente desistir de ser quem eu era, rumo sempre ao encontro do meu melhor modo de ser.

Peço a quem me lê que me ajude neste caminho. Peço à palavra que me expresse, sem receio de ser lido só pelos que riem de mim, pois esses que me enxovalham são os que mais estão em estado de urgência: eles não vomitam a própria alma para o outro, jamais estarão vulneráveis, jamais se darão sem medo da dor, jamais sentirão esta gratidão ao ser humano ou ao universo por ter sido empurrado para dar um passo adiante.

Oras, à mim, sem religião que me identifique, resta rezar como aprendi. Rezar para este vento da madrugada que sopra na janela, balança as cortinas e esfria o café. Que vela meu sono e me dá a delimitação mais precisa de que sou uma pessoa que carece de outras. Portanto, rezo: me livre de certos abismos da trivial vida de um homem. Faça com que eu ame mais e mais quem está ao meu lado, pois quem sempre cruza um oceano para me ver é quem mais me precisa - e quem mais me importa. Que eu não seja enganado, que eu não engane ninguém. Pois no afã de enganar eu estaria sendo, deliberadamente, um monte intransponível no meu próprio caminho.

O que eu quero é a ousadia de quem se olha no espelho e dá de cara com a dignidade muda de quem não fez concessões, não se vendeu. Eu sou o meu nome, de nascer até morrer... Permita que eu me levante, pois na minha queda toda a humanidade cai também, porém se esse Amor do qual falo existe, ele me ultrapassa e me dilacera mas também me restaura e me diviniza. E só então estarei pronto para dizer "amém".