terça-feira, 31 de julho de 2012

Uma carioca em São Paulo - D. Donson


É inexplicável o modo como São Paulo não se dá facilmente a uma pessoa. Basta andar por uma rua movimentada para notar, em rápido relance, que justamente aalienação de seus habitantes é o que sedimenta e alicerça as estruturas subterrâneas dessa megacidade.

Mas afinal, quem começou São Paulo? A própria Esperança. Esperança multifacetada, de rostos agrestes, peles tecnicolors, sonhos despedaçados e, insistentemente, reconstruídos, customizados e reinventados. São Paulo ganha é na persistência. Na persistência é que se ganha São Paulo.

Num desses domingos de ressaca vegetativa, domingos em que, subversivas, as pessoas decidem ir ao parque com os filhos para esquecer por alguns instantes a luta inerente da semana que se inicia, de congestionamentos, do metrô sufocante, da chuva sem guarda-chuva, do homem pedindo moeda, da mediocridade de todos nós que se compraz ao pensar que ‘eu-não-tenho-nada-a-ver-com-isso’, pois foi num desses domingos de lívida distração do cotidiano que conheci uma carioca recém-chegada à metrópole.

Não, não era somente pela beleza, porque havia outras mais bonitas que ela. Também não eram seus bons dentes, a pele porcelanada, os cabelos lisos e soltinhos. Ela tinha dentro de si o lobo dos grandes homens, a ambição e obstinação necessária para vencer a cidade (não na cidade), para escalar os altos muros de que uma São Paulo é feita.

Percebi, com ligeira surpresa que fizeram meus olhos sorrirem, que a altivez da carioca Lala, de 159 centímetros, a levaria muito longe – aonde quisesse. Além de bonita, era esperta como um menino de rua, articulada nas palavras, ela era uma forte. E os fortes são vítimas deliberadas de uma cidade que consome força e talento como São Paulo. Quase autômatos, esses fortes são rapidamente uniformizados e transformados em legítimos paulistas, pouco importa a origem ou a classe.

Entretanto, quem se torna um paulista – e Lala rapidamente o compreendeu – quem se torna um paulista deve aceitar os termos dacidadania, uma concessão muito prática e funcional: só se é paulista enquanto se há força e talento. Uma vez exaurida, a carioca poderia se deleitar sendo uma recatada mineira, uma baiana animada, ou até mesmo ser, pela primeira vez em sua vida, uma carioca, com a resignação mansa e moderada dos que são do Rio.

Lala estava pronta para São Paulo que já começara por lhe oferecer um emprego de categoria numa rede hoteleira de renome. Em outra meia palavra de nossa conversa, que começou quando quase a atropelei de patins, fotografei o relance que me fez entender que ela era o tipo de mulher que jamais seria usada sem que o preço pago fosse o suficiente para a manutenção da sua liberdade de pessoa que jamais dependeria de outras para viver.

Ela era toda sozinha no mundo, com aquela liberdade que muitas vezes aprisiona por não sabermos usar. A carioca de riso fácil perdera os pais muito cedo e tinha duas irmãs as quais a indiferença fez abortar o amor e o laço familiar mal constituído.

--- Como você está se mantendo em São Paulo ?
----Tenho meus colaboradores. Os homens são muito estúpidos e só pensam naquilo. Eu sei que não posso ser prostituta, já que não consigo sair com alguém sem atração. Mas os que me atraem terão que, de um jeito delicado ou não, colaborar comigo. E ainda pensar que sou uma garota de virtudes.

Percebi que se tratada de uma sobrevivente, ela havia sobrevivido à própria vida. Uma forma interessantíssima de sobreviver é deixar os dias escoarem como água pelo ralo, assim, distraidamente, até que o tempo passe, até que as árvores envelheçam, até que pintem os muros da cidade, até que você se torne o que sempre foi e não sabia. Assim aconteceu com esta carioca, ela tomara posse do que sempre fora dela: o direito de existir da forma que quisesse, no lugar que desejasse, com o conforto que, sim, lhe era cabido e merecido.

Naquele momento, eu sabia que não importava o que eu dissesse, ela estava fadada a sofrer todas as conquistas que uma São Paulo é capaz de oferecer a uma pessoa disposta a escalá-la, a cidade. Sofrendo as conquistas, ela se tornaria cad avez mais ávida por novos desafios, novos objetivos que, na realidade, faziam a grande roda da fortuna girar, ao preço de sua alma jovem. Vende-se a alma sem ao menos perceber, esse é o preço real dos que trabalham por si e não para si.

Quando lhe pergunto se ela sente falta da família e dos amigos, ela olha para o café como quem procura lembrar-se de algo. De súbito, uma séria expressão em seu rosto deu forma à resposta que ela criara instantaneamente para si mesma e para mim: às vezes parece que sinto falta de alguma coisa que perdi. Mas uma coisa que perdi e agora já não preciso mais. O meu negócio hoje é viver.

Com o café já frio, ficamos sentados em um silêncio tão remoto que nenhum barulho das crianças ao redor poderia quebrar. O nosso silêncio era uma estátua de gesso ou sal, jamais tocada, apenas vista. Como o silêncio da noite da cidade que agora ela passara a habitar, o silêncio que agora a abraçava como uma mãe embala seu filho nos braços. Ambos de nós éramos anônimos, cada um com uma renúncia, uma queda e uma fortaleza construída com as próprias mãos, com pedras atiradas pela vida. E nessa fortaleza fomos habitar sozinhos, eretos, impassíveis.

São Pauloé tal qual a fortaleza que muitas vezes temos que criar para, nela, com falsa segurança, irmos habitar. Nessa cidade de sol tímido, pessoas anônimas se encontram nos elevadores e supermercados para, no instante seguinte, voltaremao desconhecimento. Muitas vezes os olhares se entrecruzam pela janela de um condomínio, mas, assustadas, as pessoas fecham suas cortinas, como se o perigo fosse o outro. Trata-se do conforto da impessoalidade, de uma fortaleza construída à imagem e semelhança do que precisamos para dormir em paz, para cuidar de uma pessoa muito especial e frágil: nós mesmos.

Saindo do parque, com o rosto suado e a boca seca, a luz do sol daquela tarde de domingo começara a me queimar como uma danação, como um deserto sem horizonte. Eu sabia que estava conectado com aquela carioca. Talvez todos nós, paradoxalmente,estávamos unidos: nós estávamos só. E quem sabe não era esse o caminho da salvação: saber que se está sozinho, precisar do outro, do semelhante, do amor sublime de quem estende uma mão.

Confuso, entrei no ônibus sem olhar para trás, de alguma forma querendo fingir que não vi tão claramente o quanto nós dois estávamos precisados de um abraço gratuito, como o que demos na hora da despedida. Nós éramos estranhos no ninho, em São Paulo , no Brasil, no mundo. E viver a glória íntima de ter sobrevivido e vencido era um galardão que só esta cidade poderia dar. Dentro de mim, com a sofreguidão dos que acolhem o outro para se sentirem acolhido, inocentei a carioca de todas as trapaças que ela confidenciou naquela tarde, todos os riscos que correra e tudo o que fizerapara estar ali.

O meu negócio também era viver. E para mim não havia dúvidas de que ela era, sim, uma garota de virtudes.