segunda-feira, 7 de abril de 2008

Levantando Vôo - Daniel Donson

Dia destes me disseram que sou contestador. Pela primeira vez, em toda minha insólita vida, um adjetivo me caiu bem. Não gosto de adjetivos. A grande maioria deles são pretensiosos ou arbitrários. Transformam alguém segundo sua própria classificação sem dar ao sujeito a chance de um escolha voluntária.
Prefiro a palavra não dita. A tácita comunicação de uma parede no escuro - a parede que me impede de sair deste quarto em vôos fúlgidos, frêmitos e lívidos. A borboleta mais antiga sempre se esvoaça e choca-se contra esta mesma parede. Deveras borboletas inteligentes não saem nunca de seus casulos. É preferível contar com a segurança abstrata de um mundo meticuloso e delineado, do que se aventurar em vôos rasantes sobre a verdadeira terra.
Meu problema real é que sou a antítese dos homens. Embora até hoje tenha sido acompanhado pelo vício da racionalidade e da contemplação excessiva, sou muito mais os bichos. Tenho em mim mesmo o coração selvagem que observo na natureza, na cachoeira que rebenta na serra, no cavalo que corre para os campos verdejantes. O mesmo sonho de liberdade que aprisiona a borboleta na parede mítica e onírica que ela tratou de criar para si. A verdadeira liberdade aprisiona!
O que liberta é a aspiração de ser livre e ser livre é para poucos – utopia animal. Eu nunca fui uma vez sequer livre: por dentro eu sempre me persegui. Minha liberdade é composta de planos futuros, de fugas contraventoras, de rascunhos mal acabados e vacilantes.
Sou uma peça de metal frenética que insiste em levantar vôo. Mas equilibro-me como posso entre eu e os homens, entre eu e a gravidade, entre eu e meus devaneios – cumprindo fielmente meu falso papel de ser.
Quero aprender a voar até descobrir tudo que sempre me esconderam, tudo que está oculto ou submerso. Quero ver esta tal linha do equador. Não obstante, pretendo ver com meus próprios olhos onde o azul se torna preto e a treva de tão densa torna a claridade irreconhecível. Hoje, o céu está da cor dos meus olhos: cinza. De repente, a casa foi invadida por um silêncio tão grande e fúnebre que fiz dele a fonte de minhas palavras desarticuladas.
O ar está rarefeito e fragmentado: creio que está exaurido de ser e ser respirado. Um doce vazio se instaurou em mim, o efêmero vazio de estar livre de mim mesmo quando escrevo, quando entro em contato com minhas negras raízes, quando alimentos meus lobos e em troca, eles me humanizam.
O que me aliena do mundo animal, em contrapartida, é que sei que nasci para morrer e posso sim escolher quando e onde. Posso me perder para me encontrar. Posso gritar para não chorar. Posso abstrair o metafísico.
Tenho ódio. Deram-me um nome e depois de um prato de sopa quente, me vestiram uma roupa e disseram: seja.
Este êxtase por não caber na vida dos dias me faz ser todo torto e aos poucos. Mas concentro todos os meus talentos para o Gran Finalle: meu vôo? minha queda? Não. Meu grito de ave de rapina.
Não sei somar as compreensões, muito menos as incompreensões de outrém. Por isto não amo como resposta. Até hoje, vi o mundo por frestas, mas pronto estou para sair pela porta da frente - escancarando portões também. A morte não é tão irreversível: depende da epistemologia que se aplica ao conceito de morte. Tenho para mim que a morte é apenas uma vírgula, ou melhor, é apenas um erro ortográfico de alguém que não sabe reconhecer o alento que é uma simples reticências...