quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Mortos e desenterrados – D. Donson

Às vezes a sensação é a de que o tempo passou e nos prendeu em alguma de suas partículas etéreas. Estamos presos ao passado, à pessoa que hoje somos, presos a tudo o que se acumulou e nos transformou “nisso” que agora somos. Como a fotografia de alguém em algum momento de desconforto ou desajuste social, nós procuramos nos recompor “disso” que nos tornamos. É tudo talvez acidental e provisório.

Nessas ocasiões, sinto uma ausência profunda de jardim abandonado. Os quintais mal cuidados de mim mesmo. Nos meus cabelos eu procuro folhas secas, mas não as encontro. Não estou ao natural. Contudo, esse vazio em que sou colocado me deixa sempre límpido como poça de água parada ao mesmo tempo em que me assusta. Nele, é nele que meu reflexo se manifesta, nesse vazio ao mesmo tempo pleno eu me vejo como realmente sou.

E tudo o que de fato ameniza a dor irremediável da existência é o elixir do sono. Prenúncio diário do nosso fim, uma deliciosa experimentação. Para quem está cansado, o sonho maior é não acordar nunca... Até que, com ou sem a anuência dos viventes, esse sonho é realizado.

Grande explosão cósmica. Morrer é assim: fragmentar-se em milhões de partículas, é tornar-se através do tempo, ultrapassando e vencendo o tempo, partículas etéreas. Morrer é um ato sempre muito original e nunca sairá de moda. Sempre trará holofotes de estrela a todas as pessoas que ainda estão vivas.

Mas o sono às vezes não vem. Não são poucas as noites que tento ser amigo de mim mesmo. Tento dormir desapercebidamente, tento fingir naturalidade. Tento me voltar para o futuro como esperança última de contato com a realidade que desejo tocar. O meu mal de nunca tocar na realidade atual e, sim, aguardar a vindoura. O meu mal é estar sempre lá e quase nunca aqui. No ‘aqui’ não sei ser feliz sem me arranhar com as piores garras animais. Sou tão arisco e espantado que para mim mesmo é difícil a convivência.

Em noites como essa, eu costumo, por puro devaneio, pensar em quem já amei e em quem já me amou. Isso salva tanto porque faz-nos acreditar que é perfeitamente possível. O amor é perfeitamente possível e deve estar para acontecer. Ser amado é algo que, sim, já me aconteceu (!!!). Então são com poucos dedos que me dou conta que foram “quase” histórias. E com surpresa percebo que ainda não posso afirmar que é “perfeitamente possível”.

Guardo em segredo o nome de todos os meus mortos, todos os que já amei. Seus corpos ainda pesam sobre mim e o perfume eu ainda sei. Talvez eu ame o que eu sentia por cada um deles – e não eles. Talvez seja melancolia mansa, saudade de amar. Saudade do torpor de me sentir mais vivo, mais bonito, emitindo em ondas eletromagnéticas esse feitiço diabolicamente prazeroso: amar alguém.

Mas ainda há tanto a ser percorrido dentro desse tempo que me resta até que isso se torne atingível. Há uma grande distância dentro de mim, uma distância que me cega a visão, que me impede de me tocar e me entender como sou. Embora eu sinta que caminho esperançosamente para um encontro. Há tempos deixei de ver o quanto já percorri. Avançar é preciso e deixamos nossos pedaços na estrada para chegar a conhecer até onde conseguimos ir. Grandes pedaços essenciais, os outros. Nós os deixamos largados na estrada em prol de uma satisfação egoísta e ao mesmo tempo necessária: ser livre.

Ser livre deixa todos tristes. Como abandonar um bando que amamos e no entanto não fazemos parte? A gestação de um sonho nos obriga a ser livres e abandonar esse bando. É a natureza irremediável das coisas. Não há culpa, é o caráter fatalista de tudo o que existe. Se eu não puder amar de verdade, amarei num sentido mais amplo, amarei apenas o mundo e a minha liberdade vermelha - urgente e reveladora. Isso sim é perfeitamente possível.