domingo, 28 de dezembro de 2008

Das vantagens de se amar e ser livre - Por D. Donson


Corro muitos perigos, como toda pessoa que vive. Também eu estou vulnerável a todo e qualquer ataque – inclusive do amor. Não posso dizer, contudo, que aprendi muitas coisas nesta vida, porque não aprendi. Apenas finjo ter assimilado a lição para novamente cair nas graças do erro. Só sei de três coisas: nasci para escrever, nasci para ser livre e nasci para deixar a minha marca neste solo – o feto relutante, o feto rebelde que sobreviveu.

Uma vez eu provei da delicadeza da liberdade. Eu nunca soube ao certo o que é ser livre. Foi numa tarde de maio, o sol queimava como em um inferno. Sozinho, casa vazia. Peguei minhas economias – nunca consegui guardar economias – peguei minhas economias e comprei um suntuoso pote de sorvete de milho. Acredite, as pessoas de minha época ostentam certo preconceito em relação ao sabor milho. Eu não as condeno – também eu detinha esta aversão antes de prová-lo.

O fato é que o sabor milho é sim sobrenatural e causa demasiado prazer em quem o prova. Eu, sentando em cima da árvore de meu quintal: eu e o sorvete, nós apenas. Isso era liberdade. Sem receio de ser egoísta, eu provei da liberdade azul, da liberdade primeira que é o ato sem culpa. E a brisa era leve. Os galhos tremeluziam as sombras refrescantes por sobre minha pele. Juro que aos poucos me tornei parte daquela árvore que eu mesmo havia plantado. Já não era mais um garoto com o pote de sorvete: era uma parte da vida íntima da árvore, que hoje é árvore, mas amanhã se torna adubo orgânico para novas árvores. Essa era a lei e deveria ser respeitada.

Foi a única vez que fui livre por completo. Minto. Houve uma outra ocasião. É que certa noite eu olhei para lua e pude ver o que S. Jorge supostamente escamoteia. Foi bem aterrador. Porém não posso contar por uma questão de ética. E também porque ninguém acreditaria na minha versão – ocular – da relação de S. Jorge com o Dragão. Estas foram as vezes em que provei de liberdade, no regalo de uma vida tão singela quanto anônima e voluntariamente solitária.

Nos tempos modernos, nestes dias tão imperfeitos, estou tendo a ousadia de amar. Com muito medo e precaução, mas amor ainda assim. As vezes penso que amar é como tomar sorvete de milho: não há contra-indicações, mas o excesso pode estragar a saúde. Por isto, tenho tentado amar aos poucos para não sufocar e não causar dano aos pulmões.

É bem verdade que amar é estar preso a uma liberdade que só é válida agora e que expira no instante seguinte. Para não correr mais este risco, criei a “máquina do amor”, um arquétipo ainda em fase de experimentação, mas que serve para produzir afeto por tempo indeterminado - pode sempre ser desligado - ao bel-prazer de seu usuário. Esta máquina revolucionária é capaz de produzir toneladas de amor, o que fomenta a sensação de liberdade do usuário.

Eu particularmente tenho medo da máquina. Eu, que sempre quis esticar um pouco mais a liberdade, vejo que posso estragar tudo com este protótipo. É que em matéria de amor, não é possível usar de fórmulas ou cálculos. Amar é uma soma de incompreensões mútuas. Deste modo, concluo que ser livre não é compatível com o amor. Ser livre é viver e morrer de forma alternativa e despojada, enquanto que amar é estar acorrentado a uma alma, é sentir prazer em apertar os grilhões a cada dia para estar mais perto: é ter os lábios inchados por não querer separar a boca...

Eu, que nunca me habituei a mim, desconfio que acorrentando minha alma a de outrem, poderei driblar todo o sistema e ser livre. Sim, claro, amar e ser livre seria meu golpe final, meu grito irônico de vitória sobre a vida e sobre os seres rastejantes que se recusam a amar, mas amam o cativeiro. Pois eu, sem modéstia, escolho a melhor parte de tudo. Quero viver um grande amor. Sem datas obsoletas ou prazos de validade, mas que ele seja grande, maior do que eu e me ultrapasse e me transcenda. Porque estou vivo e reivindico minha liberdade e minha fuga. Enquanto eu respirar, prometo que amar e ser livre serão coisas emergenciais.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Para Barack Obama, Presidente.


Querido Obama,

Esta carta é como outra qualquer. Mas gostaria que fosse lida apenas por pessoas de alma já formada. Pessoas que ainda não foram violadas pela torrente de opiniões superficiais e heterogêneas a seu respeito. Não que eu queira defender uma verdade absoluta. Desejo somente usar de democracia para, com jubilo e ironia, expor meu humilde ponto de vista. Peço-lhe licença, despojo-me de toda eloqüência para, de pés descalços, falar o que alguns já suspeitam: os negros estão mudando de armas, estão tencionando reformas.


Em criança, confesso que sempre me perguntava se havia tomado sol demais ou se o Deus havia me pintado para desta forma facilitar a localização. Cresci e vi que as cores são irrefutáveis. Que fazer de minha cor, então? É fato que cada cor remete a um sentimento, um estereótipo. E, como na política, é necessário mais do que força de espírito e intrepidez para romper com estruturas errôneas a fim de instaurar novos modelos.


Um novo modelo. Insólito até, mas novo. Você cheira coisa nova, Obama! Daí toda esta inquietação, estes comentários sorrateiros e em si mesmos tão incertos. É que de repente descobrimos que tudo que dizem a respeitos dos negros não procede – não que acreditássemos nos outros, mas não acreditar em si já é prejudicial. Sua eleição foi uma espécie de alforria ideológica.


Sei que não ostentas bandeiras raciais, tampouco é o messias dos pobres e pretos e oprimidos. Também eu luto por coisa maior que cor, que sentidos: o que quero ainda não tem nome. O lado sublime de sua eleição, no entanto, foi ver o declínio da obviedade, pois toda obviedade é burra. Mas até você já percebeu quão raro é ter um negro no comando. Neste continente, isso é choque cultural.


O que ficou claro para mim é que não existe predestinação. Devemos sempre trabalhar com a probabilidade do êxito. Ficou claro também que podemos, com louvor, exterminar qualquer resquício do cativeiro em que fomos um dia submetidos para abrir largos espaços na vida. Grande estrategista que você é... fez da honestidade uma arma ardilosa contra seus acusadores, e da inteligência a premissa básica para articulação da paz.


Em suma, Obama, bom é não estar inerte frente a nossa função cosmopolita de agregar ao mundo. Cada qual a sua maneira, procura juntar alguma coisa que era essencial e não se sabe onde foi perdida. Sei que você também não acredita naquela máxima de que “todos somos iguais”. Não. Reconhecer a pluralidade humana já é um passo rumo à humanização. Somos iguais apenas em termos de potencialidades – assim como Michelle, esta sua esposa que é obstinada e decidida, um exemplo para as mulheres.


Sobre os negros sinto renovo geral. A dívida é alta, os juros também. Ainda assim regozijo com a vitória declaradamente incolor, certo de que podemos perdoar as dívidas históricas se nos oferecerem contrapesos. Devemos estar abertos ao diálogo, não é? Afinal, ninguém pretende provar nada, embora, no meu caso, haja aquela revolta quase infantil de ter sido roubado ao nascer. O que se pretende, deste modo, é recuperar uma dignidade e um respeito que, uma vez encontrados, juro por Deus, são capazes de destronar reis e presidentes, principados e potestades.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Presságios da estação - A descoberta do mundo - Clarice Lispector


Celie e Nathie, do livro e do filme A Cor Púrpura.

“Celie, é impossível o cê passar pela cor púrpura e não saber que Deus é isso daqui. Deus é as flor e as árvore, Celie, Deus é o mundo”.



Bem sei que é uma vaidade dizer em plena primavera que eu sei o que é primavera. Às vezes porém sou tão humilde que os outros me chamam a atenção. É uma humildade feita de gratidão talvez excessiva, é feita de um eu de criança, de susto também de criança. Mas, desta vez, quando percebi que estava humilde demais com a alegria que me era dada pela vinda da primavera chuvosa, dessa vez apossei-me do que é meu e dos outros.

Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o meu próprio
pólen, sinto frisson à toa quando um passarinho canta, e sinto que sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante, límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronto para recebê-la.

Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria; aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.

Sinto que viver é inevitável. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar, pois é no sangue que sinto a primavera. Dói. Posso na primavera ficar horas sentada fumando, apenas sendo. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O preço da honestidade - Por D. Donson


Uma vez, ele mostrou o dedo do meio para o mundo. Foi a resposta possível a anos de maus tratos e injustiças. Tinha por volta de 60 anos naquela época, mas já estava enfastiado de tantos desaforos e insultos à sua vaidade intelectual e, sobretudo, à sua honestidade irrepreensível, conquistada ao longo de décadas. Sim, ser honesto trazia um certo gozo de gratidão dos outros para com ele. Todos pareciam admirar-lhe por ainda conservar um nome sem restrições, uma trajetória sem mácula, abdicada. Por vezes, se sentia pleno de uma inocência quase infantil, de uma singeleza descompromissada: a doce burrice dos que recusam a corrupção cotidiana. Era retirante, o que, em uma terra de paulistas, era motivo de morte. Vivia bem com isso, apesar de.

O nome era José, é claro que era José, se tratava de um homônimo por natureza. E a vida, aparentemente, estava boa. Na verdade, José era um eterno gerúndio, sempre indo, suportando, acreditando – morrendo também (de fome), mas desconsiderando a parte negativa do processo. Talvez fosse o que se chama de bobo, estúpido, por não compartilhar dos mesmos ideais e atividades econômicas ilícitas dos seus vizinhos de favela. Pobreza de espírito, isto não possuía. Se não roubava, nem matava, nem se prostituía era tudo voluntariamente, por amor à pátria. Afinal, mesmo a mais infeliz das existências têm seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar por entre a areia e as pedras.

Não, não se pode dizer, contudo, que era um homem desprovido de sorte. Anos antes, ganhara muitos cruzados na loto. Comprara uma casa com janelas e portas, comprara também uma mulher branca e bem cuidada; sentia-se abastado e seguro. Até arriscou voltar a estudar, ao menos para poder assinar o nome, que é coisa fundamental. Então, veio o primeiro golpe: tempestade. Como construíra sua casa no alto do morro, acima de toda vizinhança agora ignóbil e desqualificada, uma tempestade de agosto pôs abaixo seu pequeno feudo. Não obstante, mesmo sendo um experimentado na vida, viu inerte seus cruzados desaparecerem depois de uma sucessão de planos monetários. Até aí tudo bem. Tudo bem. Ainda sobrava-lhe a vida.

Mais tarde, depois de construir um novo barraco, sua mãezinha, D. Mocinha – tudo que ela não era –, precisou de arrego. Com uma mala na mão e 78 anos nas costas, veio Mocinha direto de Mutuca, Pernambuco, a São Paulo: pau-de-arara de primeira linha, tinha até lugar para sentar. Uma evolução considerável, visto que já havia vindo a pé. A mãezinha, no entanto, não estava bem de saúde. Depois de uma vida laboriosa lavando roubas no rio, mesmo a mais vigorosa das mulheres se torna reumática. No terceiro dia em São Paulo, atônita, Mocinha conheceu a fila do SUS. Mas como estava cansada da viagem e da espera, a velha sentou em uma cadeira e morreu.

José se indignou e, em cólera, praguejou o governo, o prefeito, o diabo e Deus também. Sabia que o mundo lhe roubava sem parar, de que forma se defender? Assim ele foi passando, indo, divagando... ano após ano, com um bruto grito desarticulado sufocado na garganta. E nunca o vi chorar. A mim, parecia um homem comum, um preto velho e sorridente. Seu comportamento sóbrio e simplista fazia com que ele fosse visto e reconhecido como uma espécie de “cidadão”, uma estirpe subalterna e subserviente. Tudo bem. Até mesmo entre cidadãos há segregação, questão de casta. Mas a inocência primeira de José, com o tempo, foi sendo pisada. E inocência pisada é coisa perigosa, radioativa até.

Tornou-se, com ou sem ironia, a antítese do que sempre fora: O homem honesto e sem mácula, o forte sertanejo passara a ser um subversivo, um reacionário e, finalmente, um ladrão. Afinal de contas, o que se ganha quando se é honesto? Qual a diferença de ser um bandido oficial (como ele) ou um charlatão oficioso (como o prefeito de sua cidade, que não era na verdade sua cidade, mas que pelo menos sua vida deveria preservar)? José cansou da sua função de ser. Ser, nunca lhe rendera a dignidade necessária para comer bem. Ser, como quem nada exige, jamais aquecera seu barraco nas noites frias e taciturnas.

Eis que repentinamente, na flor de seus 65 anos, decidiu começar carreira nova, novas expectativas e promoções mil. Sem tempo para esperar migalhas previdenciárias! Já não havia sentido em conservar aquela honestidade intrínseca ao seu caráter que, como o de todos nós, agora o sabia, é passível de alterações. Pessoas em seu círculo social não mais existiam. Vizinhos logo morreriam queimados por bala ou na fissura das drogas. De tudo, ficaram os traumas de uma gente que não era gente: resto de matéria orgânica que em breve adubaria o solo. E sentimentos... isto era para fracos. Nele não havia mais resquício de sistema límbico. Era um potro jovem, selvagem, ávido por pastos verdejantes, escondido na pele de um preto velho e acabado.

Foi na tarde de um domingo, com um sol infernal a cauterizar o morro, que José resolveu se autopromover. Já estava farto do salário de seu trabalho enquanto desempregado vitalício: a grande medida do silêncio e da solidão. Sem ao menos o alento de um televisor (a cores ou não), José vendeu seu barraco em pedaços, a preço de barraco mesmo. Com relativo dinheiro, tomou o metrô, foi até o centro, comeu tudo quanto pode, inclusive um creme para mãos que há anos desejava saber o gosto – marca famosa. Tanto se lhe havia perdido... O problema de um dia ter tido dinheiro e belas mulheres em seu pseudo-feudo é que não se conformava com o regresso à suas origens.

E também porque desconhecia suas origens: era um aborto que, teimoso, havia sobrevivido. Com olhos obstinados e sedentos por vingança, José adentrou na prefeitura de São Paulo. Na ocasião, o prefeito sorteava casas em um grande salão, repleto de pobres. Sorrateiramente, José se infiltrou no palco, até estar frente a frente com um de seus abusadores: o prefeito. “Vim buscar o meu prêmio”, dizia ele, irônico, com uma peixeira de caboclo nas mãos. Os lábios do excelentíssimo reverberavam de horror. “No seu caso, como vejo que você está necessitado, lhe darei uma casa de presente. Mas abaixe essa faca”, dizia, com a falsa impostação própria de todo político que vê na palavra oportunidade do lucro.

José, o inquisidor, agarrou o prefeito com sua peixeira à vista, causando pânico e gritaria no local. Mas a gritaria não era de repreensão. “Pega ele, pega ele. Chama nóis aqui pra dá 30 casa!”, dizia, rebelde, a multidão. José, por sua vez, não estava preocupado com os interesses da deles. Queria somente o seu prêmio. Prêmio por ter sido honesto. E naquela altura já não estava preocupado sobre o que pensariam dele, pois a maioria das pessoas que nos querem bem quer que sejamos alguma coisa de que elas precisam. Tornara-se um animal com sua presa. A desumanidade provoca certos delírios de liberdade em alguns... Para ser livre, seria imprescindível ser bicho?


Ali estava José, sendo finalmente enxergado. Ele, em um corpo que não mais lhe pertencia, pois ultrapassara as fronteiras de sua existência limitada. Já não era mais anônimo, embora houvesse ainda muitos outros Josés. A sua glória, porém, era de José-sequestrador-do-prefeito, o que lhe trazia singular distinção. Inebriado pelos holofotes, sem o prêmio, José deu o primeiro golpe na garganta do prefeito, que era para calar quem sempre pode falar. Um êxtase. E já que não haveria prêmio pela sua honestidade, pelo menos seu grito de revolta faria ser conhecido e respeitado. E todos ouviram, até a polícia, até a morte manifestou-se: duro, ereto e decidido, José levou muitos tiros antes de cair no chão.

A vingança possível estava concluída. E o José ainda mostrou o dedo do meio para os presentes, num gesto de profundo desprezo pela... pela vida? Não sei. Mas era desprezo reprimido, porque vinha como uma torrente de água fluindo pelo corpo esquálido do preto velho. José, que sempre quis parecer gente, recebeu em si o prêmio por uma vida inteira de honestidades e camaradagem. Corpos no chão, populares curiosos, sangue que não se misturava por questões gênicas. Quem era o réu, quem era a vítima? De quem era o prêmio e a bonificação? O fato é que José criou seu Deus particular, à imagem e semelhança do que precisava para finalmente dormir tranqüilo.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Um apólogo - Machadito


UM APÓLOGO
ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? — Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou.
— Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana
— para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano.
Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?
Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Nós, os sonsos - Por D. Donson


É dada a largada. De todas as partes, do beco mais improvável da cidade aparecem candidatos sorridentes e eloqüentes, ávidos pela conquista dos votos que significarão quatro anos estabilidade. Oras, hoje em dia quem consegue receber seis mil reais, trabalhando poucas horas por dia? O pré-requisito é persuadir mil semelhantes a acreditarem na sua benevolência, altruísmo e principalmente visão de melhoramento social.
Os tímidos se tornam extrovertidos, os vulgares forjam certo freio moral, os leigos se esforçam na oratória e os corruptos, ah os corruptos se elegerão involuntariamente. Tudo o que obviamente não presta sempre me interessou muito. De tal modo que adoro analisar o perfil de cada candidato. O que, entretanto, tem me incomodado são os nomes irônicos e antológicos que eles lançam mão, a fim de se elegerem com mais facilidade.
Os candidatos acreditam, depois de brevíssimas lições de psicologia social, que se nós, os sonsos essenciais, associarmos seus nomes a seus negócios iremos de boa fé depositar nossos votos. Afinal, que motivo teríamos para desconfiar da competência de alguém que comanda um ‘buteco’, de quem lida diariamente com o alcoolismo? É que de repente nasceu a utopia da mudança e todos querem ser políticos para mudar as estruturas atuais: pelos menos as individuais, é claro.
Como dizia Nelson Rodrigues: “hoje em dia é difícil ser honesto. Todas as pressões cooperam para nosso aviltamento pessoal e coletivo”. Como posso acreditar na eficiência de alguém que sequer conhece a etimologia da palavra política? Tudo bem sobre a etimologia. Mas como posso acreditar na eficiência de alguém que apenas sabe juntar sílabas e sequer compreendeu as mendacidades que estou abordando? Quero a exposição de tudo, embora a verdade seja um relance que poucos captam, pois ela ainda não foi escrita – está nas entrelinhas.
Estou sendo manso, mas minha função de viver e denunciar a vida é feroz. Eles estão subestimando nossa capacidade mental, apelando para recursos prosaicos de associação. Se é necessário associar, é porque nunca ouvimos falar; logo, a procedência é dubitável.
Sinto é uma falta pungente de sinceridade em todos. Fala-se em democracia e cidadania, mas estes direitos que velam meu sono são tão irreais. Pago tanto e recebo tão pouco. É isto que eles têm para me oferecer? Às vezes não entender o funcionamento evita dores. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, uma doçura de burrice.
Porém, não posso ser arbitrário. As pessoas são iguais potencialmente. Pode ser que o inesperado traga coisas e a política se regenere, pois a eternidade é o estado das coisas neste momento, é próprio "statu quo". Estou certo de que não seremos enganados, não mais. Nós, os sonsos essenciais, somos no mundo de várias formas para preservar nossa liberdade. Na verdade a gente é sempre como você vê: podemos ser leves como uma brisa, ou fortes como uma ventania. Depende de quando e como nos vêem passar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Pragmática da Educação - Por D. Donson

O modelo educacional que observamos atualmente é ilusório e carente de reformas. Os valores da sociedade contemporânea estão aquém do que um dia se convencionou chamar de Educação. Inúmeros fatores contribuem para o que, usualmente, costumo chamar de Alienação Generalizada e que abrange todas as classes, credos e raças, indiscriminadamente.
A verdadeira lucidez, como eu a digo, se manifesta exclusivamente através da educação. Contudo, até mesmo o conceito de educação se encontra deturpado. O ambiente escolar, que ideologicamente seria um espaço destinado à prospecção do capital intelectual e cultural das pessoas, tornou-se um mero pré-requisito curricular, para uma posterior boa colocação profissional, para um posterior bom salário, para um posterior bom carro, para um posterior bom apartamento, para uma posterior vida medíocre repleta de coisas e que é encerrada sem a menor essência existencial permanente – que é a revelação do lobo do homem e a escolha particular de proteger as ovelhas perdidas, pois toda ovelha é burra.
E as pessoas continuam em suas rotinas frenéticas, sem ao mesmo contemplarem o objetivo sublime de fazer o que fazem, de buscar um aperfeiçoamento maior.
Daqui de baixo tenho visão panorâmica dos mundos, porque não me enquadro em sistema algum. Tenho um “contra-alguma-coisa” que me norteia nos constantes contatos que faço com o mundo real. Não possuo classe social: a classe alta me acha um monstro, a média teme que eu possa desequilibrá-la e a baixa nunca vem a mim. De modo que minha percepção sobre ser e estar e ser e ter, tem se tornado meu grito de ave de rapina, irisada e intranqüila. Espero acordar outros seres gritantes para que, em uníssono, possamos dar o grito de aviso de estarmos vivos.
Entendo o porquê a escola continua em alta, com sua grade estupidificada. No ato da matrícula, a premissa é acordada: nunca questionar demais, dúvida é coisa de perigosa - mata. Assim, todos os que se atrevem a entender, desorganizam o esquema. Sobretudo a educação de hoje está fadada ao protocolo e as regras. Ela deveria vista como um processo contínuo visando a autonomia da pessoa humana. O triste fato é que, bem ou mal, com advento das tecnologias, o ensino está cada vez mais mecânico e defasado. Para que pensar em gramática? O “Word” corrige.
A internet informa, mas não forma pessoas analíticas ou efetivamente preocupadas com algum tipo de mudança estrutural, social ou não – inércia coletiva. O "Eu" e o "Meu" são predominantes em todos os aspectos da vida. Trato de fatos abstratos e ocultos, mas enquanto tiver perguntas e não obtiver respostas, continuarei a escrever.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Um trem para as estrelas - Por D. Donson

Hoje eu pego o trem, hoje eu pego o trem
Não avisarei a ninguém, de malas prontas partirei.
Eu já estou com o pé na estrada, finalmente serei Requiem
Não sei se o que falo é o que sou, mas meu nome... Este guardarei.

Ouvi, relva do campo, ouvi, acordes do vento!
Estou voltando, estou chegando ao orgânico alento.
O rosto queimado, o suor e a fatiga
Quero um canto de paz, sem vozes atrozes,
Sem rimas antinas.

Hoje pego o trem, hoje pego trem
Estou fugindo da terra dos homens, da força gravitacional.
Cansei da limitação dos que não voam, do real - saberei o que há em Marte
Sou metafísico, imaterial, sou Hembrandt, sou Arte.

Ouvi seres gritantes, ouvi o brado dos bons!
Não estamos em paz com esta nova guerra
Que se dá no recôndito dos corações,
No foro íntimo da humanidade.

Lutamos por um novo tempo, aniquilaremos a passividade
O que importa deveras é recomeçar e construir novas edificações.
Ouvi guerreiros ardis, logo vem o trem para as estrelas
Do alto da serra, levando os feridos desta nova guerra.

E a reticente primavera breve será cortada
Mas voltará mais forte e bela ano que vem
Se a geração que ora alvorece continuar atada
Desaparecerá com a seca, não alcançará o trem...

Sou um andarilho divagante, um réu de meus ideais.
Vivo cada instante esperando um trem – o trem da salvação
Há tanto que já me perdi, temo em encontrar-me tarde demais,
E receber como pagamento, a grande medida do silêncio e da solidão.

Mineirinho - Conto



“É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: ‘O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu.’ Respondi-lhe que ‘mais do que muita gente que não matou’.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordem, e com horror digo tarde demais - vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente - não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho - essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz gostar ‘feito doido’ de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador - em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porquê adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime . Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo - uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante estásendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Sociopatas da Esfera H – O FEED

Pelo espírito de Dark Sheep Donson:

“Esta carta é como uma carta qualquer. Mas eu ficaria extremamente grato se fosse lida apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que em dado momento, a verdade torna-se a nossa maior inimiga. Aquelas que sabem que em dado momento, dizer a verdade torna-se a missão cabal de uma vida, que, sobretudo quer ser uma verdade que se reinventa com o tempo. E a verdade incomoda porque não é obsoleta. E a verdade não está à tona, está oculta, submersa em profundidades de mar. Entretanto, como a luz forte do meio-dia, ela se fará saber em poucas linhas, não para vergonha, mas para reflexão de uma nova forma de ser-no-mundo”.

Sociopata é uma definição alegórica que encontrei para meus personagens: Elemento 1 e Elemento 2. No entanto, embora pareça peculiar, o termo sociopata talvez seja o adjetivo mais adequado para definir meus nobres cavalheiros. De antemão, informo que não tenho compromisso com a realidade, e, nem mesmo que responsabilizo pelas colocações de Dark Sheep. Ele é controverso, mas uma coisa nele é constante: sinceridade. Esta sinceridade às vezes dói, como a luz do sol no reboco da parede branca. Mas fez de Dark Sheep um contestador, um espírito contraventor que desafia as estruturas errôneas de quaisquer sistemas e seus integrantes.
Sim, fico feliz por Dark Sheep habitar em mim, pois de vez em quando ele se manifesta, e eu, como ser inofensivo e quase domesticável deixo ele atuar de forma inexoravelmente precisa e justa. Sinto em gastar a tinta de minha caneta com estes personagens, pois eles não valem o preço que paguei nesta Bic, sequer sei se eles merecem o espaço que os dedico, a eles e a suas histórias. Estou com o coração divagante, sôfrego, pois Elemento 1 e 2 me remetem a uma cólera primeira, como nunca antes senti. Porém, sei que com a ação do tempo, esta mesma cólera irá conflagrar um terno sentimento de piedade e misericórdia, e isto me humanizará novamente.
Falemos sobre meu favorito: Elemento 1. Adjetivos não lhe cabem, ele quer é ser o próprio adjetivo, de modo que a glória jamais possa ser maior em outro corpo. Este Elemento guarda segredos que estão totalmente nus ao espírito que ora se manifesta nesta carta. Dark Sheep voa pelos ares, em busca da verdade do universo. E nestes vôos, muitas descobertas são feitas. Elemento 1 esconde conflitos, que agora não são mais irreveláveis e estão vindo a tona, do fundo do mar. Elemento 1 gosta de ter seu ego inflado, inflado, inflado. E se inflama quando algum outro elemento, tecnicamente desqualificado, o ultrapassa sem precedentes. Este elemento não é de todo detestável, é amável quando quer... quer algo. Seu maior sonho é dominar a palavra, é se tornar um elemento letrado e magníloquo. Infelizmente, meu personagem não sabe que a palavra não é conseguida a tapa, nem a torturas e nem através de extorsões do dicionário.
A palavra não pode ser forjada, nem violentada. A palavra nasce tacitamente de um contato sublime e íntimo com a Terra. A palavra, como eu as digo, é resultado de anos de exercício e admiração, não somente pela beleza sonora dos signos (atmosfera de descobertas infinitas), mas, sobretudo pela graça incomensurável da expressão. Expressar a alma humana, os pensamentos, os anseios, o metafísico, o onírico, o lúdico... Isto é inviolável e inalienável.
Meu personagem ainda não aprendeu que precisa aprender a curvar a sua cerviz. Elemento 1 não entende que o saber é indomável, e que o saber empresta seus conteúdos para todo aquele que está disposto a passá-lo adiante. Isto implica diligência. Quem acha que já sabe o suficiente, logo é ultrapassado pelo mais primitivo aprendiz. Acredita ele, em sua vã filosofia artificial e nada singular, que o saber o elevará, ou o emancipará de alguma maneira. Em partes é verdade. Mas a conduta é o precedente básico para quem deseja estar entre o raro e o comum. Meu personagem odeia ser prosaico, porém não tem pedigree, nem a fibra dos bons revolucionários. É covarde.
Certa vez, cansado do ócio improdutivo de sua vida diária, tentou inovar empreendendo uma fatídica revolução. Infelizmente, a revolução não alcançou mais de que um adepto. Não obstante, em tempos recentes empreendeu uma inquisição contra mim. Entretanto, a manifestação de Dark Sheep Donson me salvou da fogueira, no momento ideal, na hora H, na esfera H. Esta esfera retangular que esconde uma porção de egos espavoridos e pavorosos lutando por um reconhecimento imaginário. Fiquei exultante ao ver os faróis da justiça. Era uma espécie de antítese grotesca da famosa história de Dom Quixote e Sancho Pança, só que desarticulei o final.
Elemento 1 é acusado de cometer diversos crimes contra a escrita, é réu inconfesso. Tudo em uma tentativa pandemônica de ser eloqüente e bem posto. Já eu não tenho compromisso com absolutamente nada e ninguém. Faço questão de ser um eterno amador, pois isto me dignifica e não me padroniza. Escrevo o que espontaneamente me ocorre. Escrevo para ficar livre de mim e isto traz propriedade ímpar às minhas palavras. Não escrevo simples porque não sou simples. Não escrevo o que quero, e sim, o que de fato sou. Caro leitor, eu nunca disse que a carta seria interessante e o teor não é literário, mas libertário.
Elemento 1, depois de ter encontrado outros elementos não menos amorfos e assexuados, tratou de fazer deles seu séqüito para adentrar no social. Elemento 2 é relativamente intelectualizado, e por isto, meu elemento favorito achou que poderia ser confundido com esta desprezível tipologia. Não falarei muito sobre Elemento 2, o mais sectário de todos. Ele, por se achar demasiadamente grande, ganhará o menor espaço, o que dedico aos leigos e iletrados. Reduzirei este elemento ao cargo de aprendiz, de copiador dos outros e parco repetidor de falas. Embora eu tenha que assumir que Elemento 2 dispõe de certo capital cultural, isto de maneira alguma o elitiza, ou exalta.
Não faz questão de ser sociável, assim como eu. Não é fruto de minha criação, porque não gero mutantes deste patamar. É talvez o elemento mais maniqueísta e altivo que tive o inenarrável desprazer de conhecer. Contudo, é mortal e sensível: isto o reduz drasticamente. E novos elementos vindos das entranhas da terra vão sendo agregados ao pitoresco clube. Alguns totalmente passivos e alienados, outros, excêntricos e rebeldes. Todos em busca da sinergia do contraponto, do oposto. Querem eles atingir o Nirvana? Mal sabem que o bom do universo são as coisas simples e sem rebusco. As coisas simples são as mais difíceis de aceitar. O valor do outro, a essência humana são meus objetos de estudo constante e vitalícios. Não busco a exatidão científica, mas a construção e o melhoramento gradativo do ser-no-mundo.
Eu criei Elemento 1, com toda minha intrepidez e ousadia. Ele está desnudo para mim e sem segredos agora que resolvi publicá-lo. Poderia a criatura se rebelar contra o seu criador? Elemento 1 me deve obediência e subserviência porque além de ter sido criado pela minha existência, ele teve oportunidade de crescer em melhores condições do que eu. Não uso isto como subterfúgio, não. Embora seja mais antigo, não possui grandes méritos ou hegemonias sobre quaisquer habilidades. Não agregou muita coisa desta vida. Limitou-se a respirar e existir, respirar e existir, desconsiderando a magnitude do mundo real e do mundo dos sonhos.
Eis que agora quer recuperar o tempo perdido, sendo o que poderia ter sido e não foi. Genuinidade não lhe cabe. Sua caiada está exposta para todos. Neste momento, sei que ele está numa sala escura me praguejando, embora sugue até o fim o vocabulário que voluntariamente dôo, já que não me pertence. Empertigado. Eu, objeto de sua admiração e revolta. Justo eu que sempre me portei e essencialmente fui tão benevolente. O meu pecado? O de pensar, é claro. Oras. O de ser humilde o bastante para ler Virginia Wolf antes de criticá-la e despender opiniões robustas sobre ela. Já Elemento 2 prefere o silêncio de sua alcova. Planeja o ataque meticulosamente pelos ermos digitais, muito embora sua arrogância só tenha lhe dado a grande medida da solidão e do isolamento. Ardilosos. Elemento 1 odeia literatura brasileira. Talvez se sinta deslocado no espaço geográfico.
Em criança, eu também desconfiava de minhas origens. Mesmo na dúvida, aprendi o português com certo louvor, para somente então buscar no inglês e no verbo “To be” as frestas de um novo mundo. Meus personagens gritam, precisam ser ouvidos. São crianças carentes, precisam de colo. Eu escondo minha carência para que não me arrastem. Dia destes, as águas me trouxeram cenas corridas. Veja, meus personagens tencionavam me impedir de mudar de turma. No auge da típica frivolidade e soberba, queriam me impedir de cursar meu caminho. Como se adversidades me causassem pavor. Risos.
Mal sabem que Dark Sheep foi forjado no fogo da desigualdade, do desencanto e da desesperança. De modo que a derrota nem de longe me assusta. As adversidades nos fazem indesistíveis, inabaláveis. Em suma, não me recordo de nada do que disse, e se me perguntarem sobre a sintaxe ou semântica deste texto, responderei em outra língua. Quem fala é meu lobo. O lobo do lobo do homem, do qual falou Bandeira. O lobo da estepe, do qual falou Hersse.
Meus personagens resolveram ressurgir dos recônditos do msn para enunciar a criação de novas idéias. Como se a produção deles fosse de fato digna de crédito. Como se o passado não emitisse, uníssono, os erros ainda não concertados. Na nova e irônica empreitada, a missão dos elementos é provar aos outros elementos tidos como inferiores e não pertencentes à raça ariana que eles são profissionais gabaritados e do mais alto escalão. Utopia. Entropia. Eu? eu apenas desejo all the very best e prefiro não cooperar com seus ímpetos, negando-lhes minha atenção. Só ousei publicar meus personagens para poder matá-los. Sim, não os deixarei vivos. Contudo, sei que eles já morreram e ainda não sabem. Morrerão duas vezes, ninguém mais ouvirá palavra sobre estes mentecaptos. Ah... ah... ah... estou movido de compaixão. É que estas mentes todas vivas têm a força de um inferno. Adeus. Vou saindo vagarosamente para não morrer com vocês. Agora as máscaras estão ao chão, e se não renascerem, estes elementos apenas servirão de matéria orgânica que em breve adubará o solo.

"É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente – ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caiam com um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma pessoa”."

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Levantando Vôo - Daniel Donson

Dia destes me disseram que sou contestador. Pela primeira vez, em toda minha insólita vida, um adjetivo me caiu bem. Não gosto de adjetivos. A grande maioria deles são pretensiosos ou arbitrários. Transformam alguém segundo sua própria classificação sem dar ao sujeito a chance de um escolha voluntária.
Prefiro a palavra não dita. A tácita comunicação de uma parede no escuro - a parede que me impede de sair deste quarto em vôos fúlgidos, frêmitos e lívidos. A borboleta mais antiga sempre se esvoaça e choca-se contra esta mesma parede. Deveras borboletas inteligentes não saem nunca de seus casulos. É preferível contar com a segurança abstrata de um mundo meticuloso e delineado, do que se aventurar em vôos rasantes sobre a verdadeira terra.
Meu problema real é que sou a antítese dos homens. Embora até hoje tenha sido acompanhado pelo vício da racionalidade e da contemplação excessiva, sou muito mais os bichos. Tenho em mim mesmo o coração selvagem que observo na natureza, na cachoeira que rebenta na serra, no cavalo que corre para os campos verdejantes. O mesmo sonho de liberdade que aprisiona a borboleta na parede mítica e onírica que ela tratou de criar para si. A verdadeira liberdade aprisiona!
O que liberta é a aspiração de ser livre e ser livre é para poucos – utopia animal. Eu nunca fui uma vez sequer livre: por dentro eu sempre me persegui. Minha liberdade é composta de planos futuros, de fugas contraventoras, de rascunhos mal acabados e vacilantes.
Sou uma peça de metal frenética que insiste em levantar vôo. Mas equilibro-me como posso entre eu e os homens, entre eu e a gravidade, entre eu e meus devaneios – cumprindo fielmente meu falso papel de ser.
Quero aprender a voar até descobrir tudo que sempre me esconderam, tudo que está oculto ou submerso. Quero ver esta tal linha do equador. Não obstante, pretendo ver com meus próprios olhos onde o azul se torna preto e a treva de tão densa torna a claridade irreconhecível. Hoje, o céu está da cor dos meus olhos: cinza. De repente, a casa foi invadida por um silêncio tão grande e fúnebre que fiz dele a fonte de minhas palavras desarticuladas.
O ar está rarefeito e fragmentado: creio que está exaurido de ser e ser respirado. Um doce vazio se instaurou em mim, o efêmero vazio de estar livre de mim mesmo quando escrevo, quando entro em contato com minhas negras raízes, quando alimentos meus lobos e em troca, eles me humanizam.
O que me aliena do mundo animal, em contrapartida, é que sei que nasci para morrer e posso sim escolher quando e onde. Posso me perder para me encontrar. Posso gritar para não chorar. Posso abstrair o metafísico.
Tenho ódio. Deram-me um nome e depois de um prato de sopa quente, me vestiram uma roupa e disseram: seja.
Este êxtase por não caber na vida dos dias me faz ser todo torto e aos poucos. Mas concentro todos os meus talentos para o Gran Finalle: meu vôo? minha queda? Não. Meu grito de ave de rapina.
Não sei somar as compreensões, muito menos as incompreensões de outrém. Por isto não amo como resposta. Até hoje, vi o mundo por frestas, mas pronto estou para sair pela porta da frente - escancarando portões também. A morte não é tão irreversível: depende da epistemologia que se aplica ao conceito de morte. Tenho para mim que a morte é apenas uma vírgula, ou melhor, é apenas um erro ortográfico de alguém que não sabe reconhecer o alento que é uma simples reticências...

segunda-feira, 10 de março de 2008

O que foi feito de Vera - Elis Regina

O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida, o que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás
Falo assim sem saudade, falo assim por saber
Se muito vale o já feito, mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor
prosseguir
Falo assim sem tristeza, falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer
Nós iremos crescer, outros outubros virão
Outras manhãs, plenas de sol e de luz
Alertem todos alarmas que o homem que eu era
voltou
A tribo toda reunida, ração dividida ao sol
E nossa Vera Cruz, quando o descanso era luta pelo
pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé
E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz
Hoje essa vida só cabe na palma da minha paixão
Devera nunca se acabe, abelha fazendo o seu mel
No pranto que criei, nem vá dormir como pedra e
esquecer
O que foi feito de nós

Legião Urbana - Monte Castelo

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos
dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

quinta-feira, 6 de março de 2008

O grito - Trecho Clarice Lispector

Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar vivo, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.(...)Tudo se resumia ferozmente em nunca dar o primeiro grito - um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida. Se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que começariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência - a existência de quê? A existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do mundo para mim. (...) Eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim - eu sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco na parede - sou cada pedaço infernal de mim - a vida em mim é tão insistente que se me partirem - como uma largatixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humano, e nunca propriamente morrerei.

Meus sonhos - Trecho Clarice Lispector

Meus sonhos podem ser guardados em caixa de fósforos. Grandes ou pequenos, são meus. Sem receio de ser egoísta, quem sabe um dia, num momento normalíssimo do cotidiano, eu risque todos os fósforos. Eu odeio quando sou ritualístico e repito, cotidianamente, os mesmos sonhos. Odeio a espera. Prefiro o imediatismo da vida. Guardo meus sonhos em caixa de fósforos porque tenho a certeza de que irei queimá-los um dia. Tartarugas são as rainhas da frivolidade. E vivem 120 anos. São animais desprovidos de qualquer resquício de sistema límbico. São efêmeras. Andei pensando em tartarugas... São mocinhas sábias porque não sonham

quarta-feira, 5 de março de 2008

O Nome da Flor - Daniel Donson

Era uma como muitas, anônima por natureza
Costumava viver apesar de. Apesar de, acordava às 6:00,
Apesar de, cuidava dos filhos, Apesar de - respirava.
Mulher da lida, no corpo havia fadiga.
Os olhos denunciavam que ela não sabia gritar.
Mulher de Atenas, a típica Helena, que dá e nada pede,
Cobiça a liberdade na intimidade de seu leito.
Seu marido a machucava, ora com tapas, ora com socos.
Mas nada doía mais do que quando ele subia em cima dela.
Ele queria fazer o tal "negócio", logo depois dormia.
De modo que ela morria simbolicamente todos os dias.
E ele, vivia por ser charlatão, porque tirou dela seu senso.
E o senso era sua singular estado de estar-no-mundo.
Até que do âmago dela nasceu o grito.
E o grito desencadeou a fuga.
E ela se viu como quem, de súbito, entende um truque.
Achou que poderia pensar sozinha, se ninguém estivesse olhando.
Não era inteligente, não era bela. Já era velha.
Mas tinha o coração selvagem de um potro novo.
Pegou seus filhos, em tenra idade, e fugiu para a grande cidade.
Nas cozinhas de restaurante aprendeu a se suster.
Não era civilizada, mas sabia rezar. Aprendeu a se virar.
Lutou dentro da selva de pedras em que passou a morar.
Descobriu que se bastava, que tinha um começo, um meio e...
Não vivia mais apesar de - agora era plena, sentia o gosto.
Não provou do amor conjugal, mas amou ser uma vez livre.
Livre feito a borboleta branca de seu jardim.
Sim, agora ela cultivava flores.
Assim, ela deixou de ser anônima.
E quando se olhava no espelho, chamava-se por um nome.
Nome que a todos fez conhecer.
Então, já com os filhos crescidos, observou os anos idos...
As dores e dissabores.
Sentiu uma força irradiar de dentro de si - era sangue.
Eram pulsações de felicidade, de gozo. Tinha um nome e tinha filhos!
Também não era solitária porque tinha amigos.
Como estava farta de vida, logo partiu.
E como a primavera, ela se deixou cortar,
Para poder voltar ainda mais forte.
De modo que ela nunca propriamente morrerá.
Quem experimenta liberdade, não costuma morrer.
Apenas deixa de existir por sucessivos momentos brancos.
Logo emerge para conflagrar os renovos da estação.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Últimos Presságios - Daniel Donson

O sol insiste em nascer na terra dos viventes. A flama do dia é extremamente reveladora e entrecorta a escuridão da noite. Logo, o planeta balbucia como se de fato estivesse retornando da morte que está enraigada em trevas tão densas profundas que sequer é notada pelos aspirantes a ser humano. Só acordei porque o sol muito insistiu. Mas amanhecei em cólera. Sabe que estes setenta e sete anos pesa nas costas? Não, não, viver já não me agrada mais. O que me consola é que a maioria dos que estão lá fora já morreram, e ainda não sabem.
Uma vez mais incia-se a rotina frenética, jornada homicida pela sobrevivência, repleta de tarefas e preocupações, onde cordeiros comem lobos e o que predomina é ter um certo P de Predador. Meu corpo frêmito, costelas frágeis, andar vacilante, desequilibrado - o tempo. Ainda assim, tenho em mim todos os sonhos do mundo, e a força de um inferno para viver mais setenta e sete anos. Agora estou prestes a renunciar a intrepidez que a muito me aprisionou, para ser livre como todos os fracos, pobres e oprimidos deste hinóspito universo, onde o não saber, não ver, não ser é lucro incomensurável.
Foi como a gota que molha o chão, um relapso abrir e fechar de olhos, os anos passaram efusivamente. Não percebi de pronto, apenas senti pulsações. Como um expectro que precisa de uma simples afirmação de vida, procuro enxergar-me frente ao espelho, acreditar que as entradas do meu rosto e os meus cabelos brancos são sinais irrefutáveis de que estive bem aqui. Estou ouvindo Ray Charles, este é meu último cigarro. Já passa das 3:00 da manhã e sono não me pega mais. Cansei de ser refém de um arquétipo oculto onde as coisas acontecem antes mesmo de acontecer. Por isto estou cansado, por isto falo através da medula das palavras. É para poucos pulmões.
Já não faço mais parte deste pacto que me obriga a ser gênero e estar entre vivos. A desarticulação e a descompostura frente aos liames me agradam imensamente. O que ora sei - e isto é meu genuino espírito de vitória, divina esperança de quebra de grilhões - é que quero ter um filho. Entenda, uma parte de mim é célula, é carne, é sangue. A outra parte é átomo, é radiação, é explosão. O filho vai me curar a cegueira do olhar, a dor do pesar, e trará a delicada essência que perdi em algum lugar. Preciso me lembrar como é que se ama. E ser feliz é para que mesmo? Ele terá que se acostumar com meus cigarros e com a idéia de que já vivi mais dos que os não-fumantes.
Terá que aprender a se levantar sozinho, pois a mão amiga quase nunca vem. Terá que prometer nunca me decepecionar, porque quem ama exige, e exige para si. Exige o outro, e não dá de si. Terá que observar as estrelas, e não rejeitar o sol da manhã. Será a menina dos meus olhos, e lhe mostrarei a ambivalência de se viver apesar de. E apesar de me achar um louco, irá gostar de mim e me dar um abraço singelo. E quando ele não mais compreender o despropósito de ser, a espera do Deus, o deslocamento precoce, o aviltamento inevitável, esterei ao seu lado para dizer-lhe: "bem vindo! estas são as erosões provocadas pelo ato de viver". Assim como Primavera, irei cortá-lo para que ele volte sempre mais forte. Ele renascerá, irei chamá-lo Renato.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Aborto da Vida? - Daniel Donson

Falar sobre o aborto, sem cair no famoso senso comum é um desafio e tanto. Certamente, a afirmação de que a legalização do aborto é algo totalmente aceitável e necessário nos dias atuais, tendo como principal prerrogativa à diminuição da crescente taxa de natalidade, a superpopulação do planeta, e acima de tudo, a emancipação da mulher em relação as suas escolhas e planejamento familiar, é nitidamente compreensível. Também vale lembrar que o mesmo raciocínio se aplica para os casos de estupro e violência sexual.
Em contrapartida, a vertente oposta alega que nenhum indivíduo tem o direito de tirar outra vida – os mais sensacionalistas vociferam ainda que independente da circunstância e do tempo de gestação do feto, quem opta pelo aborto não passa de um homicida. Este argumento parece alcançar abrangência massiva por ser naturalmente irrefutável ante os liames mais conservadores de uma sociedade.
Há também quem faça crer que tempos modernos, onde o contato sexual passou a ser a premissa, o teste drive para analisar a adequação do corpo ao “amor” que as pessoas possam vir a sentir futuramente, exige soluções modernas e imediatas para imprevistos desta magnitude. Não sou tão arbitrário, mas também não sou liberal. Acredito que é melhor antever o ato para que ele não se transforme em fato.A discussão sobre o aborto é sim pertinente, mas completamente superficial. O problema não está propriamente no ventre de quem quer que seja, e sim, na forma de ser-no-mundo de cada indivíduo. Sou a favor da vida. Sempre! Entretanto, não posso deixar de notar que muitas pessoas estão mortas e não sabem. E, paradoxalmente, se questionam se querem ou não dar a luz cada vez que forem “iluminadas”.
Observando por qualquer viés, não concebo que alguém que não ame possa dar a luz, assim como não concebo que alguém que não ame possa ser feliz. A vida está vilipendiada, pois todas as pressões pessoais e sociais cooperam para a padronização de um comportamento, de um estilo de vida da qual sabemos que absolutamente ninguém sairá vivo.
“A verdade é que os seres humanos não têm bondade, nem fé, nem caridade, senão o necessário para aumentar o prazer do momento. Caçam em matilhas. Suas matilhas percorrem o deserto e dispersam-se, ladrando, pelos ermos. Abandonam os que tombam. Estão caiados, disfarçados”. Vigínia Woolf – Mrs. Dalloway.
Não sou pessimista ou tendencioso a este ponto, mas a “modernidade” prega a falta da tradição, e, implicitamente desvaloriza a instituição familiar. Não teríamos tantas meninas mães, tantos destroços emocionais, tanta mediocridade e tanta promiscuidade se fôssemos só um poucochinho mais caretas. Mas quem consegue conter a volúpia da juventude? Os corpos estão em constante ebulição, sedentos pelo prazer transitório e sem compromisso.
Freud já dizia que o menino é o pai do homem (no sentido existencial), e por isto, o homem de amanhã será o reflexo ou os cacos do homem que ora está em construção. Em suma, tenho para mim que a mulher não é um depósito de esperma e, ser macho e viril não é sinônimo de cruzamentos mil. Portanto, tirando os casos extraordinários, a solução ideal para resolver de vez este paradigma é fazer com que as pessoas gostem mais de si mesmas, respeitem mais seus corpos, pois somos exatamente o que aparentamos ser. Afinal, ninguém está na nossa pele para descobrir quão densas e profundas são nossas raízes.

É a Carne Negra - Daniel Donson


Sabemos que a pluralidade é a lei da terra. Ouve-se por aí que todos nós somos iguais, e não há motivos para se ter ‘pré-conceitos’ para com outros serem humanos, especialmente com os negros. Que bonitinho! E foram felizes para sempre. Ainda bem que nos resta certa utopia sobre nossa existência, pois alivia momentaneamente o fardo pesado das injustiças que nos são acometidas das mais diversas formas no decorrer da vida. Que ninguém me leve a mal. Estou tentando ser simples, casual e levemente risonho mesmo não escrevendo sobre o arco-íris e sua luz iridescente, posto que este existe e permanecerá existindo independente das palavras.
O que precisa ser mudado, precisa ser também exposto. Antes o sofrimento legítimo do que o prazer forçado. O que estou tentando articular é que as coisas não estão tão boas assim. Embora a apartheid tenha acabado, reside em nós, negros, grande insatisfação e vou tentar contar o porquê. Começamos pelo nome. Por que a palavra negro é sinônimo de coisa ruim? Veja bem, temos a Peste Negra, a Magia Negra, O lado Negro… Enfim, este adjetivo está intrinsecamente ligado a algo ruim, medonho. Trata-se de uma opinião pessoal: prefiro o adjetivo preto, porque este ainda está livre de associações e é minha cor favorita. Ontem eu estava indo ao Centro Cultural de minha cidade, afim de devolver uns livros e inevitavelmente passo por um bairro de classe média-alta. Aquelas casas valem no mínimo cem mil reais e elas sempre têm dois carros na garagem.
Uma bela mulher de uns trinta anos abriu o portão eletrônico de sua mega-residência para colocar seu carro na garagem; devia estar em horário de almoço. Coincidentemente, eu passava pela sua calçada, cantando na paz. Ela falava no celular e não entrou de pronto. Quando eu estava preste a passar por debaixo de seu portão, a mulher deu uma arrancada com tudo. Então eu disse: “Sua bruxa, não vou te roubar!”. Acho que ela não ouviu, mas quase me atropelou. Acho que ela imaginou que eu iria roubá-la, depois estuprá-la e deixá-la sem carro e sem seus preciosos bens. Sou obrigado a concordar com Nelson Rodrigues: “Hoje em dia é muito difícil ser honesto. Todas as pressões cooperam para nosso aviltamento pessoal e coletivo”.Eu nem usava roupas de mano, não estava que nem um “ligera”, mas mesmo assim, o que fez com que ela pensasse que eu entraria? Os três P´s: Preto = Pobre = Peão. Acho importante compreender ambas as partes. Tentei estabelecer alguma comunicação com a mulher, mas sem êxito infelizmente. Como sempre a pessoa se esconde atrás dos seus altos muros, fortaleza segura. “Às vezes podemos tratar os outros como pessoas e só receber coices, traições e abusos. Concordo. Mas pelo menos contamos com o respeito de uma pessoa, nem que seja apenas uma: nós mesmos. Não transformando os outros em coisas, defendemos pelo menos nosso direto de não ser coisa para os outros” (Fernando Savater, Ética para meu filho).
Inquestionavelmente, tenho livre arbítrio. Eu poderia ser exatamente a imagem que a sociedade pinta que sou. Você pensa que eu não tive acesso ao tráfico? Vamos à minha vila, vou te mostrar. Mas eu seria apenas another brink in the wall. Temos poucas armas para lutar contra o preconceito, e para ajudar grande parte de nossos irmãos correspondem às más expectativas, o que faz com que nossas respostas amigáveis não tenham a menor expressão, sendo apenas vociferadas através da violência. O bom do universo é que algumas existem com uma precisão absoluta. Hora ou outra vemo-nos sem defesa frente a nossa própria verdade.
“… de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão como um ruído oco. E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada chorava em silêncio para não morrer”. (Uma aprendizagem – Clarice Lispector)
Quem não é negro, não sabe o que é ser negro. Na escola, no trabalho, na igreja. Se não nos isolarmos em nossas próprias comunidades, cultura, música e amigos como viveremos, pois? Não temos nenhuma afinidade com outra classe, somos ligados em nós mesmos. Somos nossa própria ligação com o mundo. “… Já eu não tenho classe social: A classe alta me acha um monstro, a média morre de medo que possa desequilibrá-la e a baixa nunca vem a mim”. “Todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial”. (A hora da estrela – Clarice Lispector)
Sou absolutamente a favor das diferenças. Um mundo igual, de pessoas iguais – coitado dos arianos – com as mesmas praças, as mesmas flores, o mesmo jardim, deve ser tremendamente insuportável. Porque o delicado essencial não estaria presente. E o delicado essencial consiste em saber que respiramos num mesmo corpo, composto por membros de funções heterogêneas, mas indispensáveis. A raça negra jamais permaneceu intacta no meio das erosões provocadas pelo ato de viver. Isto apenas fortalece minha tese de que se não houver compreensão, tolerância e comunicação, logo, não haverá vida, nem o delicado, nem o abrupto essencial que é a tênue linha que nos distingue dos vegetais. Respiramos como eles, mas não somos apenas matéria orgânica que um dia adubará o solo.