quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Aborto da Vida? - Daniel Donson

Falar sobre o aborto, sem cair no famoso senso comum é um desafio e tanto. Certamente, a afirmação de que a legalização do aborto é algo totalmente aceitável e necessário nos dias atuais, tendo como principal prerrogativa à diminuição da crescente taxa de natalidade, a superpopulação do planeta, e acima de tudo, a emancipação da mulher em relação as suas escolhas e planejamento familiar, é nitidamente compreensível. Também vale lembrar que o mesmo raciocínio se aplica para os casos de estupro e violência sexual.
Em contrapartida, a vertente oposta alega que nenhum indivíduo tem o direito de tirar outra vida – os mais sensacionalistas vociferam ainda que independente da circunstância e do tempo de gestação do feto, quem opta pelo aborto não passa de um homicida. Este argumento parece alcançar abrangência massiva por ser naturalmente irrefutável ante os liames mais conservadores de uma sociedade.
Há também quem faça crer que tempos modernos, onde o contato sexual passou a ser a premissa, o teste drive para analisar a adequação do corpo ao “amor” que as pessoas possam vir a sentir futuramente, exige soluções modernas e imediatas para imprevistos desta magnitude. Não sou tão arbitrário, mas também não sou liberal. Acredito que é melhor antever o ato para que ele não se transforme em fato.A discussão sobre o aborto é sim pertinente, mas completamente superficial. O problema não está propriamente no ventre de quem quer que seja, e sim, na forma de ser-no-mundo de cada indivíduo. Sou a favor da vida. Sempre! Entretanto, não posso deixar de notar que muitas pessoas estão mortas e não sabem. E, paradoxalmente, se questionam se querem ou não dar a luz cada vez que forem “iluminadas”.
Observando por qualquer viés, não concebo que alguém que não ame possa dar a luz, assim como não concebo que alguém que não ame possa ser feliz. A vida está vilipendiada, pois todas as pressões pessoais e sociais cooperam para a padronização de um comportamento, de um estilo de vida da qual sabemos que absolutamente ninguém sairá vivo.
“A verdade é que os seres humanos não têm bondade, nem fé, nem caridade, senão o necessário para aumentar o prazer do momento. Caçam em matilhas. Suas matilhas percorrem o deserto e dispersam-se, ladrando, pelos ermos. Abandonam os que tombam. Estão caiados, disfarçados”. Vigínia Woolf – Mrs. Dalloway.
Não sou pessimista ou tendencioso a este ponto, mas a “modernidade” prega a falta da tradição, e, implicitamente desvaloriza a instituição familiar. Não teríamos tantas meninas mães, tantos destroços emocionais, tanta mediocridade e tanta promiscuidade se fôssemos só um poucochinho mais caretas. Mas quem consegue conter a volúpia da juventude? Os corpos estão em constante ebulição, sedentos pelo prazer transitório e sem compromisso.
Freud já dizia que o menino é o pai do homem (no sentido existencial), e por isto, o homem de amanhã será o reflexo ou os cacos do homem que ora está em construção. Em suma, tenho para mim que a mulher não é um depósito de esperma e, ser macho e viril não é sinônimo de cruzamentos mil. Portanto, tirando os casos extraordinários, a solução ideal para resolver de vez este paradigma é fazer com que as pessoas gostem mais de si mesmas, respeitem mais seus corpos, pois somos exatamente o que aparentamos ser. Afinal, ninguém está na nossa pele para descobrir quão densas e profundas são nossas raízes.

É a Carne Negra - Daniel Donson


Sabemos que a pluralidade é a lei da terra. Ouve-se por aí que todos nós somos iguais, e não há motivos para se ter ‘pré-conceitos’ para com outros serem humanos, especialmente com os negros. Que bonitinho! E foram felizes para sempre. Ainda bem que nos resta certa utopia sobre nossa existência, pois alivia momentaneamente o fardo pesado das injustiças que nos são acometidas das mais diversas formas no decorrer da vida. Que ninguém me leve a mal. Estou tentando ser simples, casual e levemente risonho mesmo não escrevendo sobre o arco-íris e sua luz iridescente, posto que este existe e permanecerá existindo independente das palavras.
O que precisa ser mudado, precisa ser também exposto. Antes o sofrimento legítimo do que o prazer forçado. O que estou tentando articular é que as coisas não estão tão boas assim. Embora a apartheid tenha acabado, reside em nós, negros, grande insatisfação e vou tentar contar o porquê. Começamos pelo nome. Por que a palavra negro é sinônimo de coisa ruim? Veja bem, temos a Peste Negra, a Magia Negra, O lado Negro… Enfim, este adjetivo está intrinsecamente ligado a algo ruim, medonho. Trata-se de uma opinião pessoal: prefiro o adjetivo preto, porque este ainda está livre de associações e é minha cor favorita. Ontem eu estava indo ao Centro Cultural de minha cidade, afim de devolver uns livros e inevitavelmente passo por um bairro de classe média-alta. Aquelas casas valem no mínimo cem mil reais e elas sempre têm dois carros na garagem.
Uma bela mulher de uns trinta anos abriu o portão eletrônico de sua mega-residência para colocar seu carro na garagem; devia estar em horário de almoço. Coincidentemente, eu passava pela sua calçada, cantando na paz. Ela falava no celular e não entrou de pronto. Quando eu estava preste a passar por debaixo de seu portão, a mulher deu uma arrancada com tudo. Então eu disse: “Sua bruxa, não vou te roubar!”. Acho que ela não ouviu, mas quase me atropelou. Acho que ela imaginou que eu iria roubá-la, depois estuprá-la e deixá-la sem carro e sem seus preciosos bens. Sou obrigado a concordar com Nelson Rodrigues: “Hoje em dia é muito difícil ser honesto. Todas as pressões cooperam para nosso aviltamento pessoal e coletivo”.Eu nem usava roupas de mano, não estava que nem um “ligera”, mas mesmo assim, o que fez com que ela pensasse que eu entraria? Os três P´s: Preto = Pobre = Peão. Acho importante compreender ambas as partes. Tentei estabelecer alguma comunicação com a mulher, mas sem êxito infelizmente. Como sempre a pessoa se esconde atrás dos seus altos muros, fortaleza segura. “Às vezes podemos tratar os outros como pessoas e só receber coices, traições e abusos. Concordo. Mas pelo menos contamos com o respeito de uma pessoa, nem que seja apenas uma: nós mesmos. Não transformando os outros em coisas, defendemos pelo menos nosso direto de não ser coisa para os outros” (Fernando Savater, Ética para meu filho).
Inquestionavelmente, tenho livre arbítrio. Eu poderia ser exatamente a imagem que a sociedade pinta que sou. Você pensa que eu não tive acesso ao tráfico? Vamos à minha vila, vou te mostrar. Mas eu seria apenas another brink in the wall. Temos poucas armas para lutar contra o preconceito, e para ajudar grande parte de nossos irmãos correspondem às más expectativas, o que faz com que nossas respostas amigáveis não tenham a menor expressão, sendo apenas vociferadas através da violência. O bom do universo é que algumas existem com uma precisão absoluta. Hora ou outra vemo-nos sem defesa frente a nossa própria verdade.
“… de repente a máscara de guerra da vida crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão como um ruído oco. E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada chorava em silêncio para não morrer”. (Uma aprendizagem – Clarice Lispector)
Quem não é negro, não sabe o que é ser negro. Na escola, no trabalho, na igreja. Se não nos isolarmos em nossas próprias comunidades, cultura, música e amigos como viveremos, pois? Não temos nenhuma afinidade com outra classe, somos ligados em nós mesmos. Somos nossa própria ligação com o mundo. “… Já eu não tenho classe social: A classe alta me acha um monstro, a média morre de medo que possa desequilibrá-la e a baixa nunca vem a mim”. “Todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro - existe a quem falte o delicado essencial”. (A hora da estrela – Clarice Lispector)
Sou absolutamente a favor das diferenças. Um mundo igual, de pessoas iguais – coitado dos arianos – com as mesmas praças, as mesmas flores, o mesmo jardim, deve ser tremendamente insuportável. Porque o delicado essencial não estaria presente. E o delicado essencial consiste em saber que respiramos num mesmo corpo, composto por membros de funções heterogêneas, mas indispensáveis. A raça negra jamais permaneceu intacta no meio das erosões provocadas pelo ato de viver. Isto apenas fortalece minha tese de que se não houver compreensão, tolerância e comunicação, logo, não haverá vida, nem o delicado, nem o abrupto essencial que é a tênue linha que nos distingue dos vegetais. Respiramos como eles, mas não somos apenas matéria orgânica que um dia adubará o solo.