segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Últimos Presságios - Daniel Donson

O sol insiste em nascer na terra dos viventes. A flama do dia é extremamente reveladora e entrecorta a escuridão da noite. Logo, o planeta balbucia como se de fato estivesse retornando da morte que está enraigada em trevas tão densas profundas que sequer é notada pelos aspirantes a ser humano. Só acordei porque o sol muito insistiu. Mas amanhecei em cólera. Sabe que estes setenta e sete anos pesa nas costas? Não, não, viver já não me agrada mais. O que me consola é que a maioria dos que estão lá fora já morreram, e ainda não sabem.
Uma vez mais incia-se a rotina frenética, jornada homicida pela sobrevivência, repleta de tarefas e preocupações, onde cordeiros comem lobos e o que predomina é ter um certo P de Predador. Meu corpo frêmito, costelas frágeis, andar vacilante, desequilibrado - o tempo. Ainda assim, tenho em mim todos os sonhos do mundo, e a força de um inferno para viver mais setenta e sete anos. Agora estou prestes a renunciar a intrepidez que a muito me aprisionou, para ser livre como todos os fracos, pobres e oprimidos deste hinóspito universo, onde o não saber, não ver, não ser é lucro incomensurável.
Foi como a gota que molha o chão, um relapso abrir e fechar de olhos, os anos passaram efusivamente. Não percebi de pronto, apenas senti pulsações. Como um expectro que precisa de uma simples afirmação de vida, procuro enxergar-me frente ao espelho, acreditar que as entradas do meu rosto e os meus cabelos brancos são sinais irrefutáveis de que estive bem aqui. Estou ouvindo Ray Charles, este é meu último cigarro. Já passa das 3:00 da manhã e sono não me pega mais. Cansei de ser refém de um arquétipo oculto onde as coisas acontecem antes mesmo de acontecer. Por isto estou cansado, por isto falo através da medula das palavras. É para poucos pulmões.
Já não faço mais parte deste pacto que me obriga a ser gênero e estar entre vivos. A desarticulação e a descompostura frente aos liames me agradam imensamente. O que ora sei - e isto é meu genuino espírito de vitória, divina esperança de quebra de grilhões - é que quero ter um filho. Entenda, uma parte de mim é célula, é carne, é sangue. A outra parte é átomo, é radiação, é explosão. O filho vai me curar a cegueira do olhar, a dor do pesar, e trará a delicada essência que perdi em algum lugar. Preciso me lembrar como é que se ama. E ser feliz é para que mesmo? Ele terá que se acostumar com meus cigarros e com a idéia de que já vivi mais dos que os não-fumantes.
Terá que aprender a se levantar sozinho, pois a mão amiga quase nunca vem. Terá que prometer nunca me decepecionar, porque quem ama exige, e exige para si. Exige o outro, e não dá de si. Terá que observar as estrelas, e não rejeitar o sol da manhã. Será a menina dos meus olhos, e lhe mostrarei a ambivalência de se viver apesar de. E apesar de me achar um louco, irá gostar de mim e me dar um abraço singelo. E quando ele não mais compreender o despropósito de ser, a espera do Deus, o deslocamento precoce, o aviltamento inevitável, esterei ao seu lado para dizer-lhe: "bem vindo! estas são as erosões provocadas pelo ato de viver". Assim como Primavera, irei cortá-lo para que ele volte sempre mais forte. Ele renascerá, irei chamá-lo Renato.