segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Respirar o mundo, inspirar a vida - D. Donson




Eu começara de repente a imaginar que para todas as coisas havia uma voz oculta e somente perceptível aos ouvidos do coração. Um sentido secreto. E se aproximar desse sentido seria a missão de toda uma vida.

Coloquei os patins, fazia um frio agradável e reticente, o último suspiro do inverno que perdia a força. O céu era denso e cinza como uma cortina que tapa o brilho real da noite. O vento entrecortava minha boca como lâminas suaves, chegando apenas como leve brisa no interior da alma assustada.

A música transladava. As experiências de movimentos, pouco a pouco, me enchiam de uma graça que só na infância, só na infância eu havia sentido. Eu era a música, eu era o objeto que se unia ao vento. Não, não contra ele, mas a seu favor, eu me deixava levar para sentir a respiração do mundo, o vento era o hálito fresco de toda a Terra sob a qual eu deslizava.

E eis que, para a minha surpresa, lá estava uma quadra toda vazia, cem metros só meus, para meus compassos, quedas e saltos, como nunca antes, eu tinha a quadra para brincar sozinho.

Era para me fazer feliz que uma quadra toda vazia fora deixada naquele parque aberto até tão tarde.

Era para me fazer feliz que, exausto, eu me deitava naquele chão de cimento gelado onde o céu me fizera tão pequeno, e, em silêncio, eu era capaz de ouvir a respiração do mundo, o balançar das árvores, a eternidade do instante que jamais eu tornaria a viver.

Era solitário sim, não podia compartilhar. Era um prazer novo, o de respirar sozinho o mundo, mas ainda assim um prazer. Com a essencial medida de endeusamento que só os prazeres podem dar ao homem.

Foi então que não suportei mais. Não poderia mais ficar um minuto sequer com o peso daquela felicidade estranha e aguda. A felicidade-sem-motivo começara a me incomodar como um chiclete nos cabelos: não me pertencia.

Foi então que entendi: a moderada tristeza me era um estado primordial, ela me trazia a lucidez necessária para uma vida sóbria, como um café gelado que, se levado a boca, é o prenúncio do fim de uma conversa muito enfadonha com uma pessoa.

Foi então que tirei os patins, cansado, corpo exaurido, passos de uma pessoa que jamais tivera a pretensão de ser algo muito além do que uma pessoa. Missão tão grande e delicada que passa desapercebida pela vida, o dever de ser uma pessoa.

Mas eu sei que dias e noites virão em que eu, novamente, terei que me libertar das amarras e parar... ouvir, sentir a vida que acontece, o ano de 2012, o dia 21 de setembro, isso era eu, isso era o meu tempo que transcorria. Tic, tac, tic, tac. Não havia volta. Outros já haviam tido o seu tempo, mas esse era o meu. O que fazer? Como eternizá-lo?

E nada duraria, nada duraria até o instante seguinte. A sorte, a sorte é que tudo se renova na respiração do mundo, o ciclo de minha vida será exato e inexorável. Eu não viverei nem mais nem menos do que devo, exato como só o é a perfeição da matemática da natureza que eventualmente ouso tocar. E a essa alegria, ninguém pode resistir por muito tempo, ela é tão grandiosa que nos ultrapassa e nos machuca, como ver Deus também deve machucar os olhos. O que nos salva é saber distraidamente que todas as coisas que existem são precisas. 

E absolutamente perfeitas.