domingo, 28 de dezembro de 2008

Das vantagens de se amar e ser livre - Por D. Donson


Corro muitos perigos, como toda pessoa que vive. Também eu estou vulnerável a todo e qualquer ataque – inclusive do amor. Não posso dizer, contudo, que aprendi muitas coisas nesta vida, porque não aprendi. Apenas finjo ter assimilado a lição para novamente cair nas graças do erro. Só sei de três coisas: nasci para escrever, nasci para ser livre e nasci para deixar a minha marca neste solo – o feto relutante, o feto rebelde que sobreviveu.

Uma vez eu provei da delicadeza da liberdade. Eu nunca soube ao certo o que é ser livre. Foi numa tarde de maio, o sol queimava como em um inferno. Sozinho, casa vazia. Peguei minhas economias – nunca consegui guardar economias – peguei minhas economias e comprei um suntuoso pote de sorvete de milho. Acredite, as pessoas de minha época ostentam certo preconceito em relação ao sabor milho. Eu não as condeno – também eu detinha esta aversão antes de prová-lo.

O fato é que o sabor milho é sim sobrenatural e causa demasiado prazer em quem o prova. Eu, sentando em cima da árvore de meu quintal: eu e o sorvete, nós apenas. Isso era liberdade. Sem receio de ser egoísta, eu provei da liberdade azul, da liberdade primeira que é o ato sem culpa. E a brisa era leve. Os galhos tremeluziam as sombras refrescantes por sobre minha pele. Juro que aos poucos me tornei parte daquela árvore que eu mesmo havia plantado. Já não era mais um garoto com o pote de sorvete: era uma parte da vida íntima da árvore, que hoje é árvore, mas amanhã se torna adubo orgânico para novas árvores. Essa era a lei e deveria ser respeitada.

Foi a única vez que fui livre por completo. Minto. Houve uma outra ocasião. É que certa noite eu olhei para lua e pude ver o que S. Jorge supostamente escamoteia. Foi bem aterrador. Porém não posso contar por uma questão de ética. E também porque ninguém acreditaria na minha versão – ocular – da relação de S. Jorge com o Dragão. Estas foram as vezes em que provei de liberdade, no regalo de uma vida tão singela quanto anônima e voluntariamente solitária.

Nos tempos modernos, nestes dias tão imperfeitos, estou tendo a ousadia de amar. Com muito medo e precaução, mas amor ainda assim. As vezes penso que amar é como tomar sorvete de milho: não há contra-indicações, mas o excesso pode estragar a saúde. Por isto, tenho tentado amar aos poucos para não sufocar e não causar dano aos pulmões.

É bem verdade que amar é estar preso a uma liberdade que só é válida agora e que expira no instante seguinte. Para não correr mais este risco, criei a “máquina do amor”, um arquétipo ainda em fase de experimentação, mas que serve para produzir afeto por tempo indeterminado - pode sempre ser desligado - ao bel-prazer de seu usuário. Esta máquina revolucionária é capaz de produzir toneladas de amor, o que fomenta a sensação de liberdade do usuário.

Eu particularmente tenho medo da máquina. Eu, que sempre quis esticar um pouco mais a liberdade, vejo que posso estragar tudo com este protótipo. É que em matéria de amor, não é possível usar de fórmulas ou cálculos. Amar é uma soma de incompreensões mútuas. Deste modo, concluo que ser livre não é compatível com o amor. Ser livre é viver e morrer de forma alternativa e despojada, enquanto que amar é estar acorrentado a uma alma, é sentir prazer em apertar os grilhões a cada dia para estar mais perto: é ter os lábios inchados por não querer separar a boca...

Eu, que nunca me habituei a mim, desconfio que acorrentando minha alma a de outrem, poderei driblar todo o sistema e ser livre. Sim, claro, amar e ser livre seria meu golpe final, meu grito irônico de vitória sobre a vida e sobre os seres rastejantes que se recusam a amar, mas amam o cativeiro. Pois eu, sem modéstia, escolho a melhor parte de tudo. Quero viver um grande amor. Sem datas obsoletas ou prazos de validade, mas que ele seja grande, maior do que eu e me ultrapasse e me transcenda. Porque estou vivo e reivindico minha liberdade e minha fuga. Enquanto eu respirar, prometo que amar e ser livre serão coisas emergenciais.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Para Barack Obama, Presidente.


Querido Obama,

Esta carta é como outra qualquer. Mas gostaria que fosse lida apenas por pessoas de alma já formada. Pessoas que ainda não foram violadas pela torrente de opiniões superficiais e heterogêneas a seu respeito. Não que eu queira defender uma verdade absoluta. Desejo somente usar de democracia para, com jubilo e ironia, expor meu humilde ponto de vista. Peço-lhe licença, despojo-me de toda eloqüência para, de pés descalços, falar o que alguns já suspeitam: os negros estão mudando de armas, estão tencionando reformas.


Em criança, confesso que sempre me perguntava se havia tomado sol demais ou se o Deus havia me pintado para desta forma facilitar a localização. Cresci e vi que as cores são irrefutáveis. Que fazer de minha cor, então? É fato que cada cor remete a um sentimento, um estereótipo. E, como na política, é necessário mais do que força de espírito e intrepidez para romper com estruturas errôneas a fim de instaurar novos modelos.


Um novo modelo. Insólito até, mas novo. Você cheira coisa nova, Obama! Daí toda esta inquietação, estes comentários sorrateiros e em si mesmos tão incertos. É que de repente descobrimos que tudo que dizem a respeitos dos negros não procede – não que acreditássemos nos outros, mas não acreditar em si já é prejudicial. Sua eleição foi uma espécie de alforria ideológica.


Sei que não ostentas bandeiras raciais, tampouco é o messias dos pobres e pretos e oprimidos. Também eu luto por coisa maior que cor, que sentidos: o que quero ainda não tem nome. O lado sublime de sua eleição, no entanto, foi ver o declínio da obviedade, pois toda obviedade é burra. Mas até você já percebeu quão raro é ter um negro no comando. Neste continente, isso é choque cultural.


O que ficou claro para mim é que não existe predestinação. Devemos sempre trabalhar com a probabilidade do êxito. Ficou claro também que podemos, com louvor, exterminar qualquer resquício do cativeiro em que fomos um dia submetidos para abrir largos espaços na vida. Grande estrategista que você é... fez da honestidade uma arma ardilosa contra seus acusadores, e da inteligência a premissa básica para articulação da paz.


Em suma, Obama, bom é não estar inerte frente a nossa função cosmopolita de agregar ao mundo. Cada qual a sua maneira, procura juntar alguma coisa que era essencial e não se sabe onde foi perdida. Sei que você também não acredita naquela máxima de que “todos somos iguais”. Não. Reconhecer a pluralidade humana já é um passo rumo à humanização. Somos iguais apenas em termos de potencialidades – assim como Michelle, esta sua esposa que é obstinada e decidida, um exemplo para as mulheres.


Sobre os negros sinto renovo geral. A dívida é alta, os juros também. Ainda assim regozijo com a vitória declaradamente incolor, certo de que podemos perdoar as dívidas históricas se nos oferecerem contrapesos. Devemos estar abertos ao diálogo, não é? Afinal, ninguém pretende provar nada, embora, no meu caso, haja aquela revolta quase infantil de ter sido roubado ao nascer. O que se pretende, deste modo, é recuperar uma dignidade e um respeito que, uma vez encontrados, juro por Deus, são capazes de destronar reis e presidentes, principados e potestades.