quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A Hora do astro - D. Donson

Engraçado pensar na insignificância e obsolescência do tempo. O tempo, que pacientemente conta seus segundos e parece estar sempre a espreita aguardando para marcar a hora H de todas as coisas. Ironia maior é saber que um segundo isolado é a tênue diferença entre a vida e a morte, entre a lucidez e o último fio de pensamento daquele que inspira e expira o que outrora foi o sopro da vida.
E foi numa destas muitas noites mórbidas, frígidas e soturnas que o relógio marcou o exato momento da despedida de um dos meus. O círculo peculiar de pessoas que naturalmente nos cercam – querendo ou não, a pluralidade é a lei da terra – o círculo começou a andar. Sim, digo círculo peculiar porque este é meio quadrado, entende? Na verdade ele é mutante, sem forma fixa, sem identidade definida. As cortadeiras, como de praxe, não tardaram a chegar com seus sacos de lágrimas na mão para iniciar sua verossímil missão: chorar.
Resisti ao máximo para não exteriorizar o breu e a neblina que de súbito observei dentro de mim. Saiba que não tenho medo dos fortes ventanias, nem das tempestades aterradoras, porque eu também sou a escuridão da noite. O que de fato me intriga e me incomoda até a medula, é o barulho uníssono das vozes insólitas e dissolutas que permeavam o ambiente.
Eles jamais poderiam imaginar que uma forma infalível de se ter, é não desejar, e apenas acreditar que o silêncio contido naquele caixão é a resposta ao grande mistério da vida. Seria surpreendente se todos descobrissem que não há nada a ser descoberto. O que é factível é somente o que os nossos olhos podem alcançar. Deve ser um ultraje ou um apelo a vaidade intelectual do homem crer que todas as coisas são exatamente o que elas aparentam ser e que a morte nada mais é do que a cobrança dos juros do efêmero contrato que assinamos quando resolvemos por a cara neste mundo.
Compreendo que a dor da saudade deva ser latente nos pobres corações – o que não concebo é o porque tanta estima, tanto esmero não é expresso enquanto ainda respira o falecido.
Nas tardes vazias, no ócio da palavra amiga que constitui a amarga solidão, onde estavam estes que agora lhe tocam a mão?
Nos natais triviais, no inevitável dia dos pais, onde estava seu círculo quadrado que agora exige mais e mais?
Da minha poltrona confortável eu tinha uma visão panorâmica e privilegiada. Cada olhar furtivo, cada gesto meticulosamente premeditado, cada palavra afável e ao mesmo tempo contrabandeada, tirada do intransferível acervo pessoal daqueles que amam em secreto.
De que ainda aplaudir o artista quando este já está fora de cena? De que adianta dar a ele mil rosas roubadas em prova de sua importância, quando este já foi habitar nos campos santos?
Porque não reconhecer a luz de um astro quando ele ainda existe e seu brilho ainda se espalha? Já não há mais poesia e nem prosa que possa refletir com exímia perfeição a luz que agora se apagou. E como diria Clarice: “quem não é um acaso na vida?”.
Quanto a mim? Fiquei oco, plácido e impassível. Com um sabor nostálgico na boca do que poderia ter sido e não foi. Fiquei ali, querendo dar arrivederte e ao mesmo tempo segurando a explosão. Acho que foi a rica paz que invadiu minhas fortalezas, e efusivamente evitou a guerra.
Expressei-me através da inexpressividade, meu silêncio falou bem mais.
Não posso esquecer que também faço parte deste círculo meio quadrado e vicioso.
Sim.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Enganei o bobo - D. Donson

Enganei o bobo e o bobo sou...eu. Se tivesse percebido a grande tolice que é permanecer de peito aberto, teria feito uma cirurgia para doar meu coração a um desgraçado qualquer, meu velho coração jovial, que acha que ainda está em forma e em plena atividade, esqueci de avisá-lo da minha inóspita morbidez. Hoje não vou falar de amor, quero abrir rapidamente a caixinha onde guardo os meus lobos e mostrar em poucas palavras a que vim.
Meu sobrenome é, e permanecerá sendo intensidade. Nasci assim: inflamável. Portanto, se meu doce jeito de ser não lhe agrada, sei fazer pirofagias, cuspo fogo e mando você para o lugar que você mais gosta de estar, compreende? F....-se!
Não preciso de metáforas para te resumir: uma bela criatura que anda errante, nômade inconstante que não se fixa em canto algum e vive sempre querendo voltar atrás. Um olhar tão singelo, tão amável que por um momento me lembrou a inocência que a tanto já perdi. Sinto sua falta, linda.
Tenho a mesma durabilidade que o fogo. Enquanto o vento sopra, estou em combustão. Cessou-se o vento, logo, deixo de existir. Fui forjado no fogo, como uma arma de guerra apta para toda e qualquer batalha. Estou sempre de olhos bem abertos, buscando loucamente uma visão mais ampla e mais fidedigna com a realidade que gosto de construir. E qual problema? Se não gosto de alguma coisa, tenho o direito de ao menos concebê-la de uma outra maneira para mim. Estou aprendendo a brincar de bola, sem bola, porque odeio futebol! Que todos aqueles idiotas quebrem suas canelas, porque as minhas já vieram quebradas.
Depois me chamam de louco: vê se sou eu quem paga milhões para um (sem adjetivo) ficar correndo atrás de um objeto redondo que passa daqui para lá e de lá para cá. Que as minhas pragas fiquem só no papel, não quero ter os estádios contra mim. Eles provavelmente nunca me lerão, mas estou disposto a me desculpar, sem partir para a força bruta, é claro. Esta que também não é meu forte.
Estou de mau humor, me perdoe paciente leitor – se agüentou meu pragmático desabafo até aqui, você merece um beijo na boca que certamente não darei porque nem me olhei no espelho e nem escovei os dentes, acabei de despertar para fumar um cigarro e este não é meu único vício nestas madrugadas soturnas.
Fatalmente, tudo é “por enquanto” e, nada é “para sempre”. Por que isto tem que ter sempre uma conotação sentimental? Nada do que está escrito aqui precisei sentir para escrever. Apenas imaginei que sinto, assim como imaginei que te amava. É assim que eu funciono: Um espelho fiel que te reflete, e por causa disso te incomoda. Eu queria ser bonzinho, queria ser um diminutivo pacato e risonho, até mesmo vilipendiado. Não sirvo. A minha existência começa por mim, estende-se até...chegar em mim novamente.
Gostaria de dividir-me em dois, como não posso quero dividir minha falta de criatividade, minha viral ansiedade, minha múltipla personalidade, meu eu massificado e multifacetado com você. Para tanto, preciso minimante de um sorriso seu. Daqui a pouco o relógio marcará 5:00 horas e precisarei levantar. Mas estarei contanto as horas, no intuito de... mudar meu sobrenome para um outro que você possa compreender e pronunciar com mais facilidade. Não quero me fingir de bobo, pois, no fundo no fundo eu sou mesmo, também faz parte da minha enigmática natureza.

Dia de Introspecção - D. Donson

Hoje, parei um instante,
Quis me dar uma chance para desabafar.
Porque tudo é tão inconstante
E de uma hora para outra tudo pode mudar?

Hoje, segurei-me um segundo,
Não quis mergulhar mais fundo neste mar de ilusão.
Por que, se tão belo é o mundo,
Não concorda comigo, não me dá a razão?

Bem sei que até hoje nada sou.
Também sei que de tudo, mais peço do que dou.
Porém, se alguém me quer bem,
Apenas creia em meus sonhos, não são coisas do além.

Se por fim, como neste prelúdio,
O verbo ou o gerúndio não tiver ocorrido,
Quem sou eu afinal? Como o lírio do campo,
Dilacerado pelas daninhas? Antes tivesse eu nunca nascido.

Ainda me resta o amanhã, e quem sabe o que há de ser?
Somente desejo copiosamente aprender a viver.
Assimilarei as regras do jogo, construirei meu próprio palco.
Farei do medo, um salto.
Das chances, a cena.
E finalmente, sei que tudo valerá a pena.

sábado, 17 de novembro de 2007

O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa

Heterônimo Alberto Caeiro

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo a roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou - "Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte ...

Provocações - Luís Fernando Veríssimo

A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram lhe provocando por toda a vida. Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: - Violência, não!

Isto - Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Uma nova tela - D. Donson

Estou pintando um novo quadro. A tela ainda está pálida e sem forma, mas acho que se eu usar o vermelho, irei retratar toda vida que corre nas suas veias e nas minhas. Sim, porque o sangue nada mais é do que a expressão brutal e latente da vida dos organismos vivos. A cor também lembrará o amor, o verbo no infinitivo que cerca a atmosfera de todo ser que respira. Não posso me esquecer do preto, que permanece sendo minha cor favorita. Lançarei a tinta abruptamente, para que a minha mente não reflita sobre possíves traços voluntários. Isso remeterá a doce ilusão que só as aparências podem causar. Sim, porque as aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam, pois o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões. Qual é a cor do ódio? A mistura de todas elas. O ódio é um grande mentiroso, que não assume que ama incondicionalmente e por isto anda soltando fumaças, tentando provar afirmações, inquirindo, requirindo e fazendo crer que a sua existência é totalmente legalizada. Portanto, ele estará presente na tela mesmo que eu não queira. É uma força da natureza. Usarei o azul, que desde a infância não me chama mais atenção, mas que na certa tem o seu valor imaterial. Ele talvés servirá como uma tentativa, uma efêmera tentativa de me levar de volta ao meu passado de um jeito misterioso e contraditório. Um passado que me transformou no que hoje eu sou. Gosto do branco, pois ele me transporta para o início de tudo. E não pense que é ruim recomeçar, não! Insisto na idéia de sempre recomeçar, sempre rever. Somente o branco me dá a permissão de misturar outras cores, outros tons e meticulosamente reinventar tudo que eu destruo com tanta facilidade. E este mesmo poder destrutivo eu sei manifestar em tudo e em todos, menos na minha arte. Abusarei do verde, verde claro. Verde claro em abundância, por favor me entenda! Geralmente não uso esta cor, acho ela muito previsível, sendo comum, sabe? Mas hoje eu acabarei com a única bisnaga que há muito já comprei. Sabe, a simplicidade do verde me impressionou de repente. Cheguei a conclusão de que ninguém precisa complicar demasiadamente, é preciso simplicidade para fazer florecer. De súbito pude constatar que as cores quentes são maravilhosas para ajudar-nos a passar os invernos intermináveis que as vezes atravessamos. Além do mais, a esperança está explicita nesta cor. Contudo, ainda sinto falta de mais cores. De mais cores ou de mais telas? Nenhuma pintura é íntima o suficiente para traduzir o que as vezes sinto, nenhuma palavra é tão eloqüente ao ponto de eu me fazer entender para quem mais desejo. E nesta tentativa retórica de me auto-conhecer é que eu me perco. Paradoxalmente, me ocorreu que o poeta estava certo quando disse: "...E que seja preciso eu me perder para finalmente me encontrar."

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Rifa-se um coração - Clarice Lispector

Rifa-se um coração quase novo.

Um coração idealista.

Um coração como poucos.

Um coração à moda antiga.

Um coração moleque que insiste

em pregar peças no seu usuário.

Rifa-se um coração que na realidade está um

pouco usado, meio calejado, muito machucado

e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.

Um pouco inconseqüente que nunca desiste

de acreditar nas pessoas.

Um leviano e precipitado coração que acha que

Tim Maia estava certo quando escreveu...

"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero,

é isso que eu espero...".

Um idealista...

Um verdadeiro sonhador...

Rifa-se um coração que nunca aprende.

Que não endurece, e mantém sempre viva

a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.

Um coração insensato que comanda o racional

sendo louco o suficiente para se apaixonar.

Um furioso suicida que vive procurando

relações e emoções verdadeiras.

Rifa-se um coração que insiste

em cometer sempre os mesmos erros.

Esse coração que erra, briga, se expõe.

Perde o juízo por completo

em nome de causas e paixões.

Sai do sério e, às vezes revê suas posições

arrependido de palavras e gestos.

Este coração tantas vezes incompreendido.

Tantas vezes provocado.

Tantas vezes impulsivo.

Rifa-se este desequilibrado emocional que abre

sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,

mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.

Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado

por quem gosta de emoções fortes.

Um órgão abestado indicado apenas para

quem quer viver intensamente

contra indicado para os que apenas pretendem

passar pela vida matando o tempo,

defendendo-se das emoções.

Rifa-se um coração tão inocente

que se mostra sem armaduras

e deixa louco o seu usuário.

Um coração que quando parar de bater

ouvirá o seu usuário dizer

para São Pedro na hora da prestação de contas:

"O Senhor pode conferir.

Eu fiz tudo certo,

só errei quando coloquei sentimento.

Só fiz bobagens e me dei mal

quando ouvi este louco coração de criança

que insiste em não endurecer e,

se recusa a envelhecer"

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por

outro que tenha um pouco mais de juízo.

Um órgão mais fiel ao seu usuário.

Um amigo do peito que não maltrate

tanto o ser que o abriga.

Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,

mas que incomoda um bocado.

Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda

não foi adotado, provavelmente, por se recusar

a cultivar ares selvagens ou racionais,

por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio,

sem raça, sem pedigree.

Um simples coração humano.

Um impulsivo membro de comportamento

até meio ultrapassado.

Um modelo cheio de defeitos que,

mesmo estando fora do mercado,

faz questão de não se modernizar,

mas vez por outra,

constrange o corpo que o domina.

Um velho coração que convence

seu usuário a publicar seus segredos

e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Medo - D. Donson

Quando o sol vai embora, e a noite anuncia as horas de trevas, ele começa a invadir meu quarto como a fumaça densa de uma fogueira acesa em minha porta. Sequer pede licença, simplesmente entra como se conhecesse cada milímetro da minha fortaleza. Não há como escapar. Concluí que ele já deixou de ser um agente externo e transitório para fazer parte de mim. Assim como uma parasita se alimenta de seu hospedeiro, o medo suga minhas energias e meu direito de pensar livre de sua influência. Algumas coisas que tenho medo são irreveláveis, outras, somente compreensíveis.

Tenho medo de não acordar, do sopro da vida deixar meus pulmões enquanto ainda repouso da fatídica missão de continuar a viver, cada dia de uma vez – e o maldito calendário me engana, me confunde e me aliena do tempo e do espaço do qual faço parte.

Tenho medo de gente, porque nenhuma gente é genérica e padronizada, o que me faz tentar abstrair uma série de comportamentos e realidades totalmente diferenciadas e distintas uma das outras. Eis outra fatídica missão: sociabilização. Desde que entrei na sociedade deste planetinha, tenho tentado ser comum – agradeça se você é comum e possui uma ‘comunidade’, pois este nome denota uma comum unidade, o que eu desconheço por força das circunstâncias e da natureza. – e por várias vezes me adequar aos valores e tradições que ela prega, mas que ironicamente se contradiz. De que me adianta a tal civilidade? Que ninguém se engane, a minha simplicidade artificial é uma luta ferrenha entre a expressão e o entendimento. Ser comum é maravilhoso! A excentricidade é minha grande inimiga, é a sombra que corre ao meu lado, em constante sinergia com a minha dúbia, mas afável presença.

Tenho medo de contemplar a destruição de todas as coisas que acredito. Mais ainda, das coisas que amo. Sim, pois se há algum antídoto para o medo e se alguma virtude realmente possui poder transformador, esta é o amor. Isto seria o fim da estrada, o fim da ideologia, da sublime vocação. A ideologia é a única coisa de valor em um homem, posto que todo homem é miserável por si só e, portanto, se alimenta de uma, criada por si ou dada por terceiros. Há um fragmento irrecobrável no âmago do ser humano. Acha ele, em sua tola e vã superstição que perdeu algo em algum lugar. Verdade é que nunca esteve com ele, apenas uma ideologia pode persuadi-lo a crer que o que busca está escondido atrás do relógio, então ele passa a vida toda crendo que quanto mais o ponteiro gira, mais próximo fica o seu glorioso futuro e o encontro com o saudoso fragmento - utopia. Somente assim se consegue nelsonrodrigueseanamente encarar a vida como ela é.

Eu tenho medo acima de tudo de mim mesmo. Não tenho medo do diabo ou daquilo que não é tangível. Contudo, meus lobos vivem guardados numa caixinha compacta, ávidos por uma insólita oportunidade de mostrar as suas garras a platéia, que quer mais é pão e festa. Minha autopsicanálise culminou num pragmático senso de ridículo, que me acusa de maneira julgadora e inapropriada. Meu lado pessoal tornou-se impessoal, meu inimigo mortal é meu lado fatal. Meu fatal lado esquerdo, como diria Drummond. É nestas horas que eu resolvo hibernar, como um urso safado que espera a pior estação passar para somente então ir à caça.

Tenho medo essencialmente do frio, porque ao certo não sei, mas ele me remte uma nostalgia intimista e retrógrada, como se fosse necessária várias vidas, vários ambientes, várias cronologias para eu conseguir o que realmente desejo. O que desejo? Esta é a pergunta mais evasiva e recorrente que me faço quando o sol reaparece, acho que desejo respostas. Desejo ser intrépido o suficiente para escolher o que desejar e não ter medo conhecer o que ora se não é manifesto. Desejo acertar não o alvo que os outros não conseguem, e sim, o alvo que eles não podem ver.

Definição - D. Donson

Isso sou eu:

Um fragmento em busca da outra parte,

Um nome que ninguém sabe pronunciar,

Uma língua sem tradutor algum,

Uma força da natureza, perdida no cosmo das ilusões.

Isso sou eu:

Uma pergunta sem resposta,

Uma casa feita na areia,

Uma falta de estrutura,

Uma sede insaciável.

Esse sou eu:

Aquilo que eu nunca fui,

As coisas que poderia ser,

Aquilo que ainda serei,

Um conjunto de virtudes.

Esse sou eu:

Um séqüito de mistérios,

Um coração amoroso,

Uma mente perigosa,

Uma mistura de gostos.

Minha cor preferida - D. Donson

Se minha cor preferida é o preto,

Deve ser porque o azul sempre se escondeu de mim.

Se meus cabelos caem todo dia 11 de abril,

Deve ser porque a juventude nunca esteve a meu favor.

Se meu coração é um navegante solitário,

Deve ser por que as respostas que eu procuro, não estejam em terra firme.

E ainda que estivessem certamente elas fugiriam para as entranhas da terra.

Se meu corpo é a prisão de meus desejos e da minha alma indomável,

Por que será que eu o escondo sob estes trajes ridículos?

Se a droga da poesia não me aponta a solução,

Porque insisto em fazer dela minha única companhia?

O meu canto permanece ecoando pela casa vazia,

E meu quadro negro, permanece indecifrável e sem vida.

Seria esta a minha arte?

Usar uma única cor sobre a tela e ainda assim torná-la interessante?

Não. Preciso de outras cores, outros tons, outros pronomes, outros sons.

Onde encontrá-los? Estou perdido neste labirinto oculto, desconheço a saída.

Mas às vezes escuto vozes que vem lá de fora.

Então eu amo amar o que não compreendo. E compor com meu mísero vocabulário.

E ter fé do tamanho de um grão de mostarda, para continuar a sorrir. E sorrir. E sorrir.

Sendo que o saco de risadas que observo nos outros, é tão vazio quanto o meu.

Nada como o sol para me despertar e me fazer levantar.

Nunca se atrasa e não me deixa perder hora. Quer me levar para estrada.

Ele sabe que na minha idade só a velocidade anda junto a mim.

Piso bem fundo, esqueço do meu mundo, não posso voltar.

sábado, 10 de novembro de 2007

A Vida em uma noite - D. Donson

Antes de raiar o sol, descia rio abaixo o jovem Cuabara. Em sua rotina diária, a única forma de se deslocar da comunidade em que vivia até a cidade mais próxima, era através de rústicas e alternativas barcas indígenas.
Obstinado, Cuabara não media esforços para concretizar seu maior objetivo: deixar sua comunidade ribeirinha e partir rumo aos Estados Unidos da América. Jovem de dores, experimentado nos mais diferentes trabalhos braçais, não se sentia porém em desvantagem com os garotos da cidade grande, nem física ou intelectualmente. Tinha sede de vida. Sede esta, que não era saciada, pois não sabia como fazê-lo. Sonhava com uma viagem intensa e, porque sonhava, a viagem existia. Num de seus cadernos escolares lia-se: ”Entre a parede e a espada, prefiro me lançar contra espada”.
Numa manhã de inverno, quando o orvalho se dissipava em sua face morena, Cuabara decidiu mudar o curso do rio, o curso da vida. Pegou o trecho que levava a capital e remou ininterruptamente durante quase dois dias. As luzes nova-iorquinas eram seu único alento a cada braçada e os outdoors de um novo mundo pareciam convidá-lo a entrar. E entrou. Ao chegar na capital, Cuabara se dirigiu ao porto. Foi uma tremenda emoção conhecer o mar e maior ainda seria a utopia de cruzá-lo com sucesso. Foi assim, que sorrateiramente Cuabara entrou num navio que levava soja aos Estados Unidos.
Quando a luz do farol inglês o despertou, ele não podia acreditar no que seus olhos viam. O encontro enfim chegara: A criatura e o criador, o ódio e o amor.Tudo parecia se completar na alma ávida por liberdade do rapaz ao avistar os arranha-céus. Finalmente fazia parte do séqüito que cercava aquele lugar. Mas quem disse que somos donos de nossos passos? Apenas que andamos. Cuabara sabia andar, porém não sabia por que andava. Tão perto e tão longe. Viu-se dentro de águas que não eram o seu ribeiro. Afogou-se à dez metros da areia. O passeio não foi como o esperado. A noite em que saiu de casa prometia mudanças e cumpriu. Viveu a vida em uma noite. O que de fato seria melhor? Sofrer os presságios do destino, ou lutar contra as adversidades? Cuabara obteve a resposta.

A Casa - D. Donson

Onde fica minha casa?
No fim da estrada, na ponta do nada, onde eu costumo brincar.
Atrás do horizonte, no cume do monte que não paro de olhar.
Na beira do cais, que me permite transportá-la para qualquer lugar do mundo.
Quando quero, mergulho bem fundo, por vários minutos e ela ainda está lá.

Como é a minha casa?
Uma obra prima da arquitetura incompreendida. Não precisa de janelas ou entradas.
Se adapta a cada ocasião, a cada tipo de chão e nunca me deixa sozinho.
As visitas não são freqüentes. Uma casa ambulante, que sempre andou errante,
Por milhas distantes, não soube parar, criar raízes ou estacionar.

Não quero mudar, pois todos os dias sou concebido aqui.
Desperto com um céu azul metafórico, que enche meu leito de inspiração.
Então suspiro e me indago para que as pessoas colocam tetos sobre suas cabeças.
E quando chove, cria-se a condição ideal para uma nova gestação.

Por isso que gosto da casa. Nada me cobra, tudo me proporciona.
Não deseja que eu coloque relógios em sua única parede anormal.
Nem regue o obsoleto jardim que eventualmente nos cerca.
O tempo não é um enfado para nós, e sim, um aliado incondicional.

Nunca sei para onde vou. Contudo, na casa posso ter a paz e o descanso que mereço.
Uma vez tentei parar, ter vizinhos. Até plantei algumas vinhas e sonhei que iria colhê-las
Porém, na matina, vieram as raposinas e destruíram minhas vinhas – quase enlouqueço!
Nunca mais me fixei num canto sequer. Ninguém sabe se ocupo ou não lugar no espaço.

Mas a casa está ficando velha e cansada de peregrinar. E eu estou com os ossos moles e finos.
Sei que isto é coisa do tempo. Pensei que tivéssemos um trato, uma aliança.
Pelo que vejo ele está querendo cobrar algo. Está batendo seus malditos sinos.
E a minha moderna casa caiu, como um castelo de areia. Acabou nossa andança.

Hoje estou me arrastando, pedindo abrigo, de porta em porta.
O elixir se esgotou, quando se encerrou a jornada.
Descobri que a felicidade está no caminho e não propriamente no destino.
Entretanto, não construí vínculos, achando que para sempre teria a casa – que nada!
Desconsiderei o fator de que o tempo poderia mudar.
Agora me vejo em tetos fechados, lamentado a dor.
Se meus ossos permitirem, ainda vou construir uma nova casa para lá ir morar.
Contudo, não sei viver a longo prazo. Reconstruir exigirá um novo acordo com aquele traidor.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O Número zero - D. Donson

O primeiro dos dígitos. Quando nascemos, ele inicia uma contagem abstrata, a qual sabe-se por onde começa, porém o fim é um grande mistério. Um número vazio, que não chama a atenção para si e não incita desejos.

O Brasil, por sua vez, tem se tornado perito em multiplicação se escândalos públicos. Já não é mais necessário citar um acontecimento específico em Brasília, pois além de ninguém mais erguer as sobrancelhas, seria injusto avacalhar somente um em meio a tantos.

Genuinamente, todos os artigos que leio, dizem a mesma coisa: A ética política foi sepultada de tal forma, que nem Deus sabe ao certo sua localização. Entretanto, há quem diga que não se trata de uma questão geográfica, e sim, histórica. Alegam que o governo de “Fulano de Tal” aliado ao partido “Sicrano”, colocou rédeas no desenvolvimento.

Particularmente, não creio que tenha sido exatamente assim. Talvez, grande parte destas conquistas, deva-se à geração visionária que constituía o país nestes períodos. Sempre houve rumores de que a união faz a força. De fato, ela é intrínseca quando se pretende impor ou reinventar a ordem e o progresso que a muito não se vê.

Sabe-se que sozinhos nada somos. Nesta era de informações, é possível notar que há uma falta latente de formação, de construção dos indivíduos que compõe nossa sociedade. A soma, o altruísmo, os vínculos com os assuntos que nos dizem respeito são elementos fundamentais para resolver as crises. Mas veja, não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida! Vamos tentar outra vez, pois o Zero + “Eu” é igual a “Eu”. Contudo, o Zero + “Eu” + “Você” é igual a “Nós”; a primeira pessoa do plural e única capaz de aniquilar a inércia dos bons, de destruir muralhas, de ratificar legados e provocar mudanças.

Nada de clichês. Os cara-pintadas, por exemplo, já tiveram a sua chance. É chegada a hora de limparmos a cara do Brasil, pois, como dizia Elis Regina, o novo sempre vem. Uma elite intelectual não é o suficiente. Por mais belas e virtuosas que as palavras sobre o papel possam parecer, a eloqüência jamais chega as grandes massas. É neste instante que o número zero ganha um sentido extraordinário: quando se sente o miasma da realidade e não se tem perspectiva alguma de redenção, a solução pungente é retomar, recomeçar.

Nelson Rodrigues dizia que hoje é muito difícil não ser canalha, posto que todas as pressões cooperam para nosso aviltamento pessoal e coletivo. Mas não sejamos pessimistas. O maior aviltamento que existe, é negar a existência de um futuro – seja ele qual for. Um futuro. Certamente o relógio marcará zero horas, e enquanto tivermos ar nos pulmões, teremos que despertar.

Um consolo: existem seis bilhões de pessoas insatisfeitas por algo. Em suma, não é fácil cogitar soluções tangíveis para todos os flagelos e dissabores que nos circundam.

Achou esta frase piegas? É mesmo. Nem tudo é poesia ou lógica. A miséria humana é transformada em versos para nos ajudar a acreditar que as coisas não são tão radicais e inflexíveis. E não são. Aliás, depende do ponto de vista. Eu prefiro ouvir esta voz que canta, esta voz que dança, esta voz que gira bailando no ar.

E o número zero? Permanecerá sendo transparente e otimista: “até hoje nada sou, mas contigo serei dez.”

A Borboleta obsoleta - D. Donson

São várias as faces que passam.

Vários olhares oblíquos e preocupados,

Vários mundos em um só mundo,

E uma borboleta querendo voar.

Quisera eu ser como ela! Embora no momento não consiga voar,

Também não é notada.

Não faz parte do mundo, dos mundos,

Que agora observo com clareza

Tanta ambição, tanta avareza,

Cada qual no seu séqüito de desejos e anseios.

Não sei como perdem tanto tempo não olhando para o lado,

Pois sobre o vendo gelado a um ser em movimento.

E a beleza da vida? Está nos olhos de quem prefere não ver,

De quem prefere ser uma borboleta obsoleta.

Sem grandes feitos, sem grandes queixas,

Sem grandes alegrias, sem grandes dores,

Pega carona no vento, seu único alento,

Nada de amores.