sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Presságios da estação - A descoberta do mundo - Clarice Lispector


Celie e Nathie, do livro e do filme A Cor Púrpura.

“Celie, é impossível o cê passar pela cor púrpura e não saber que Deus é isso daqui. Deus é as flor e as árvore, Celie, Deus é o mundo”.



Bem sei que é uma vaidade dizer em plena primavera que eu sei o que é primavera. Às vezes porém sou tão humilde que os outros me chamam a atenção. É uma humildade feita de gratidão talvez excessiva, é feita de um eu de criança, de susto também de criança. Mas, desta vez, quando percebi que estava humilde demais com a alegria que me era dada pela vinda da primavera chuvosa, dessa vez apossei-me do que é meu e dos outros.

Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o meu próprio
pólen, sinto frisson à toa quando um passarinho canta, e sinto que sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante, límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronto para recebê-la.

Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria; aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.

Sinto que viver é inevitável. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar, pois é no sangue que sinto a primavera. Dói. Posso na primavera ficar horas sentada fumando, apenas sendo. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O preço da honestidade - Por D. Donson


Uma vez, ele mostrou o dedo do meio para o mundo. Foi a resposta possível a anos de maus tratos e injustiças. Tinha por volta de 60 anos naquela época, mas já estava enfastiado de tantos desaforos e insultos à sua vaidade intelectual e, sobretudo, à sua honestidade irrepreensível, conquistada ao longo de décadas. Sim, ser honesto trazia um certo gozo de gratidão dos outros para com ele. Todos pareciam admirar-lhe por ainda conservar um nome sem restrições, uma trajetória sem mácula, abdicada. Por vezes, se sentia pleno de uma inocência quase infantil, de uma singeleza descompromissada: a doce burrice dos que recusam a corrupção cotidiana. Era retirante, o que, em uma terra de paulistas, era motivo de morte. Vivia bem com isso, apesar de.

O nome era José, é claro que era José, se tratava de um homônimo por natureza. E a vida, aparentemente, estava boa. Na verdade, José era um eterno gerúndio, sempre indo, suportando, acreditando – morrendo também (de fome), mas desconsiderando a parte negativa do processo. Talvez fosse o que se chama de bobo, estúpido, por não compartilhar dos mesmos ideais e atividades econômicas ilícitas dos seus vizinhos de favela. Pobreza de espírito, isto não possuía. Se não roubava, nem matava, nem se prostituía era tudo voluntariamente, por amor à pátria. Afinal, mesmo a mais infeliz das existências têm seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar por entre a areia e as pedras.

Não, não se pode dizer, contudo, que era um homem desprovido de sorte. Anos antes, ganhara muitos cruzados na loto. Comprara uma casa com janelas e portas, comprara também uma mulher branca e bem cuidada; sentia-se abastado e seguro. Até arriscou voltar a estudar, ao menos para poder assinar o nome, que é coisa fundamental. Então, veio o primeiro golpe: tempestade. Como construíra sua casa no alto do morro, acima de toda vizinhança agora ignóbil e desqualificada, uma tempestade de agosto pôs abaixo seu pequeno feudo. Não obstante, mesmo sendo um experimentado na vida, viu inerte seus cruzados desaparecerem depois de uma sucessão de planos monetários. Até aí tudo bem. Tudo bem. Ainda sobrava-lhe a vida.

Mais tarde, depois de construir um novo barraco, sua mãezinha, D. Mocinha – tudo que ela não era –, precisou de arrego. Com uma mala na mão e 78 anos nas costas, veio Mocinha direto de Mutuca, Pernambuco, a São Paulo: pau-de-arara de primeira linha, tinha até lugar para sentar. Uma evolução considerável, visto que já havia vindo a pé. A mãezinha, no entanto, não estava bem de saúde. Depois de uma vida laboriosa lavando roubas no rio, mesmo a mais vigorosa das mulheres se torna reumática. No terceiro dia em São Paulo, atônita, Mocinha conheceu a fila do SUS. Mas como estava cansada da viagem e da espera, a velha sentou em uma cadeira e morreu.

José se indignou e, em cólera, praguejou o governo, o prefeito, o diabo e Deus também. Sabia que o mundo lhe roubava sem parar, de que forma se defender? Assim ele foi passando, indo, divagando... ano após ano, com um bruto grito desarticulado sufocado na garganta. E nunca o vi chorar. A mim, parecia um homem comum, um preto velho e sorridente. Seu comportamento sóbrio e simplista fazia com que ele fosse visto e reconhecido como uma espécie de “cidadão”, uma estirpe subalterna e subserviente. Tudo bem. Até mesmo entre cidadãos há segregação, questão de casta. Mas a inocência primeira de José, com o tempo, foi sendo pisada. E inocência pisada é coisa perigosa, radioativa até.

Tornou-se, com ou sem ironia, a antítese do que sempre fora: O homem honesto e sem mácula, o forte sertanejo passara a ser um subversivo, um reacionário e, finalmente, um ladrão. Afinal de contas, o que se ganha quando se é honesto? Qual a diferença de ser um bandido oficial (como ele) ou um charlatão oficioso (como o prefeito de sua cidade, que não era na verdade sua cidade, mas que pelo menos sua vida deveria preservar)? José cansou da sua função de ser. Ser, nunca lhe rendera a dignidade necessária para comer bem. Ser, como quem nada exige, jamais aquecera seu barraco nas noites frias e taciturnas.

Eis que repentinamente, na flor de seus 65 anos, decidiu começar carreira nova, novas expectativas e promoções mil. Sem tempo para esperar migalhas previdenciárias! Já não havia sentido em conservar aquela honestidade intrínseca ao seu caráter que, como o de todos nós, agora o sabia, é passível de alterações. Pessoas em seu círculo social não mais existiam. Vizinhos logo morreriam queimados por bala ou na fissura das drogas. De tudo, ficaram os traumas de uma gente que não era gente: resto de matéria orgânica que em breve adubaria o solo. E sentimentos... isto era para fracos. Nele não havia mais resquício de sistema límbico. Era um potro jovem, selvagem, ávido por pastos verdejantes, escondido na pele de um preto velho e acabado.

Foi na tarde de um domingo, com um sol infernal a cauterizar o morro, que José resolveu se autopromover. Já estava farto do salário de seu trabalho enquanto desempregado vitalício: a grande medida do silêncio e da solidão. Sem ao menos o alento de um televisor (a cores ou não), José vendeu seu barraco em pedaços, a preço de barraco mesmo. Com relativo dinheiro, tomou o metrô, foi até o centro, comeu tudo quanto pode, inclusive um creme para mãos que há anos desejava saber o gosto – marca famosa. Tanto se lhe havia perdido... O problema de um dia ter tido dinheiro e belas mulheres em seu pseudo-feudo é que não se conformava com o regresso à suas origens.

E também porque desconhecia suas origens: era um aborto que, teimoso, havia sobrevivido. Com olhos obstinados e sedentos por vingança, José adentrou na prefeitura de São Paulo. Na ocasião, o prefeito sorteava casas em um grande salão, repleto de pobres. Sorrateiramente, José se infiltrou no palco, até estar frente a frente com um de seus abusadores: o prefeito. “Vim buscar o meu prêmio”, dizia ele, irônico, com uma peixeira de caboclo nas mãos. Os lábios do excelentíssimo reverberavam de horror. “No seu caso, como vejo que você está necessitado, lhe darei uma casa de presente. Mas abaixe essa faca”, dizia, com a falsa impostação própria de todo político que vê na palavra oportunidade do lucro.

José, o inquisidor, agarrou o prefeito com sua peixeira à vista, causando pânico e gritaria no local. Mas a gritaria não era de repreensão. “Pega ele, pega ele. Chama nóis aqui pra dá 30 casa!”, dizia, rebelde, a multidão. José, por sua vez, não estava preocupado com os interesses da deles. Queria somente o seu prêmio. Prêmio por ter sido honesto. E naquela altura já não estava preocupado sobre o que pensariam dele, pois a maioria das pessoas que nos querem bem quer que sejamos alguma coisa de que elas precisam. Tornara-se um animal com sua presa. A desumanidade provoca certos delírios de liberdade em alguns... Para ser livre, seria imprescindível ser bicho?


Ali estava José, sendo finalmente enxergado. Ele, em um corpo que não mais lhe pertencia, pois ultrapassara as fronteiras de sua existência limitada. Já não era mais anônimo, embora houvesse ainda muitos outros Josés. A sua glória, porém, era de José-sequestrador-do-prefeito, o que lhe trazia singular distinção. Inebriado pelos holofotes, sem o prêmio, José deu o primeiro golpe na garganta do prefeito, que era para calar quem sempre pode falar. Um êxtase. E já que não haveria prêmio pela sua honestidade, pelo menos seu grito de revolta faria ser conhecido e respeitado. E todos ouviram, até a polícia, até a morte manifestou-se: duro, ereto e decidido, José levou muitos tiros antes de cair no chão.

A vingança possível estava concluída. E o José ainda mostrou o dedo do meio para os presentes, num gesto de profundo desprezo pela... pela vida? Não sei. Mas era desprezo reprimido, porque vinha como uma torrente de água fluindo pelo corpo esquálido do preto velho. José, que sempre quis parecer gente, recebeu em si o prêmio por uma vida inteira de honestidades e camaradagem. Corpos no chão, populares curiosos, sangue que não se misturava por questões gênicas. Quem era o réu, quem era a vítima? De quem era o prêmio e a bonificação? O fato é que José criou seu Deus particular, à imagem e semelhança do que precisava para finalmente dormir tranqüilo.