quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Uma Rainha Anônima – por Marcolino.

Ela era magra, negra fosca, talvez tivesse 52 anos e cerca de um metro e oitenta de altura. Não poderia dizer o porquê, mas desde a primeira vez que a vi na calçada uma súbita suspensão de realidades me tomou, eu sabia exatamente quem ela era: agora e antes. Com seu carrinho compacto cheio de ferramentas de limpeza, estava sempre apressada cruzando os quarteirões da Avenida Paulista, de olho no seu pequeno relógio dourado. 

Não houve ocasião para conversarmos. Já entendi desde cedo que se tratava de uma mulher muito ocupada, não poderia interrompê-la nos seus dez minutos de intervalo entre um prédio e outro. Em seu uniforme branco e azul, impecavelmente alinhado, lia-se nas costas: “Limpeza Veloz, limpamos escritórios em apenas 50 minutos”.

Não sei que espécie de arrebatamento me fez enxergar essa mulher com uma delicadeza primeira que mesmo ela desconhecia. A grande precisão com que organizava seus espanadores, panos e desinfetantes, ela era esmerada, diligente e conhecia muito bem seu trabalho. Ninguém o faria melhor que ela. O que quer que ela se propusesse na vida, era o tipo de pessoa que “ninguém faria melhor”. Era o que se pode chamar de uma vida incumbida.

Sua postura era ereta, o andar, decido. Esboçava cerca altivez involuntária que somente rainhas possuem. Então seria isso? Seria ela uma rainha africana que, ao caminhar com seus olhos graúdos e cinzas erguidos para uma linha imaginária acima de seu corpo, fazia com que, nós, seus súditos, reconhecessem sua autoridade e, por isso mesmo, se prostrassem diante de sua grandeza e magnificência? Encostado no tronco de uma árvore, eu a observada em cada meticuloso gesto, estarrecido por essa espécie de benevolência que temos diante dos santos ou de artistas que admiramos muito.

Bastava então telefonar para receber um das meninas da “Limpeza Veloz”. Contudo se eu ligasse, chamaria especificamente ela, ela que não sei o nome. Por vezes ela estava em turma. Duas ou três colegas que, como formiguinhas, se dividiam agilmente entre os quarteirões da Avenida Paulista. Mas nenhuma das outras possuía essa venerável nobreza de rainha nata como ela.

O cabelo crespo estava sempre alinhado em tranças na raiz, era tão ousada que usava um baton cor de café. Tamanha era sua vaidade e autoestima que nas bochechas secas nota-se também passava um pouco de batom vermelho, conferindo desnecessário rubor a sua cara preta e limpa. O corpo era reto e magro, uma chefe tribal em pele de mulher cotidiana e anônima. Ela esgueirava-se entre os executivos com uma dignidade que os ultrapassava. Ela caminhava, na verdade, dentro de seu mundo feliz e de imperceptível graça, com a gentileza e bem-aventurança que nessa cidade (meus Deus!) era o que mais faltava.

A nossa terra era seca e as bocas sem saliva se misturavam na multidão com aquela atmosfera de estresse, de impaciência, de carreiras, de coisas mais importantes, mas ela era toda úmida e alegre e despreocupada. Carregava consigo sua garrafinha de água e seus braços negros brilhavam no sol. Houve um dia que a vi sorrindo com suas colegas. Dentes mais brancos no mundo não deveria haver. Ela parecia estar em paz com sua vida, esse era seu segredo: estava satisfeita. Resignação e a falta de ambição são coisas absolutamente distintas. Resignação é uma forma de paz e essa a fazia flutuar com seu carinho cheio de produtos mágicos.

Sobre o que ela meditava a cada 50 minutos é-me impossível de contar. Entretanto sei que em sua cabecinha de mulher ela tinha mil ideias de vida, de sociedade, de amor e perdão. E de essencialidade divina também. Sabia como ninguém que a desorganização exterior das pessoas, tanto no trabalho como em casa, era sintoma do caos interior que guardavam em segredo inviolável para si mesmos. Para ela, ser livre, ser básica e ser organizada, eram coisas tão óbvias que nem mencionava em seu currículo.

Nossos olhos se cruzaram uma única vez. Foi então que eu soube. Seu trabalho a fazia se sentir como uma pessoa incumbida. A minha inveja de pessoas incumbidas. Justo eu que estive a vida toda procurando uma incumbência real e legítima, que revelasse talvez... talvez uma vocação. E a altiva limpadora veloz a me mostrar como se produz uma vida feliz, caminhando como ela, livre como ela, básica como ela. Ela, que nada a ninguém devia e ninguém a ela. Sozinha, satisfeita e alegre.

Como num torpor de ambição, eu quis me unir ao sentimento dela. Será que também eu teria habilidade ou competência para ser um “limpador veloz”? Eu estava prostrado diante da rainha, poderia começar limpando pequenas coisas, atento aos detalhes e ao indispensável rigor com que ela olharia os objetos. Até que ela desapareceu na sacada de um prédio. Não trocamos contato. Não trocamos nada. Talvez voltasse a vê-la como em outras vezes. Mas o que importa é ela me deu, generosamente e vagarosamente, um exemplo. Ela me deu talvez a maior de todas as tarefas de uma vida: achar uma incumbência.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Acerca dos desafios alcançados e das observações banais – D. Donson

Não me lembro se foi Wilde que disse que “a vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos”.  E tem razão. Quando conseguimos nos afastar um centímetro de nossa própria mediocridade isso faz-nos ver tudo ao nosso redor com uma clareza antes desconhecida.
Experimentar esses momentos deliciosos depois de uma longa caminha de labor e ansiedade, sem dúvida, vale uma vida inteira. Quem sabe essa súbita claridade interior é o que se convencionou , através dos tempos, ser chamado de... de “paz”. Estar em paz com sua própria guerra, um modo excitante de ser feliz.
E para que essa paz chegue é preciso deixar tanta coisa para trás, sentimentos que não nos servem mais. É preciso contar também com um pouco de sorte, com a ajuda de quem, muitas vezes, menos esperamos. E eu garanto que a melhor sensação de um ser humano, a mais elevada, é um dia precisar de ajuda e ser ajudado. Isso é o que nos torna pessoas!
Estou tão iluminado por meus planos terem dado certo. Você começa a se sentir vazio, busca uma ideia nova, a ideia ocorre de repente, vira um sonho, que se torna um projeto e realizar o novo projeto se torna algo mais importante inclusive que você mesmo.
Gostaria de agradecer a todos que de alguma forma participaram, os franceses que conheci, as pessoas brilhantes que sempre estiveram perto de mim. Também agradeço quem não acreditou em mim, quem se tornou algum desafeto.  Vocês me motivam a trazer à existência esse êxtase que agora estou imerso.
Embora eu esteja deitado nesse jardim, dentro do centro da cidade, com esse reflexos de luz por entre as árvores, por dentro estou dançando. Uma dança africana da alegria original, do êxtase primeiro, consciência pura submergindo todas as minhas inseguranças. Eu queria estar assim para sempre, mas sei que não vai durar.
O importante é prosseguir, distraidamente, rumo a esses deliciosos momentos. Ao encontro de si mesmo, sempre. E esse vento maravilhoso, esse jardim, disso sentirei falta. Há um caminho para ser livre, mas ele está oculto dentro de nós. Atingir essa consciência sobre a estranha beleza do mundo é o grande desafio de toda uma vida.

L’eternité est l’état des choses en ce moment.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Março, um mês para se morrer de vida - D. Donson


De repente, era março. Com suas nodosas raízes, ele vira março se levantar diante de si como uma grande árvore de outono. Naquele mês, ele estava de uma atenção muda, ansiedade controlada, sabia que algo estava para nascer ou morrer. E se fosse uma morte, seria das mais acidentais e tolas. Mas alguma coisa aconteceria antes do dia 31, dizia sua alma que nem em sono podia descansar de forma despojada e livre de inquietações. Como aquela danação de estiagem que antecede a vinda de uma grande chuva, há tempos esperada no sertão que era o seu próprio mundo. Esse alívio, esse contentamento manso, esse ato glorioso de tirar as sandálias e descansar os pés, isso tudo em um mês tão discreto e sem grandes anunciações.

Março não demorara como ele havia pensado tempos antes. Março levantara a sua lâmina da justiça – a mesma que certa cartomante lhe vaticinara – com a urgência sobre-humana de quem está escapando da prisão. Março era todo místico, um mês para se acreditar em tudo, todos os portais pareciam abertos. Dentro de um silêncio interior prazeroso, ele deixara-se perder em devaneios cada vez mais ousados em um mês de tantas possibilidades, tão atroz quanto perplexamente revelador.

Março era para todas as fés se unirem, era para superar a cotidiana mediocridade espiritual. Ninguém que se julguesse um pouquinho sensível deixaria de notar a atmosfera geral de mudanças que aquele março parecia trazer. Mas era algo para se viver solitariamente e fingir desconhecimento. Como uma graça prodigiosa que se eleva de súbito em nosso espírito, como um feche de luz em quarto há dias fechado e umedecido. Lembrou-se então que, fossem quais fossem os resultados das sementes que plantara, março havia chegado com suas chuvas torrenciais – nada seria como antes. As chuvas fariam brotar o que ele havia semeado ou afogariam de vez as verdes folhas de sua frágil esperança, seus esforços de ampliação de vida.

Apenas quem havia captado certo relance saberia que março era de surpresas irremediáveis, um mês em que cada dia pulsava acelerado, como coração de atleta em maratona olímpica. E quem o amava, também sentia esses batimentos. Esse mês que, aos poucos, foi se tornando tão difícil e duro... Um monte a ser escalado com joelhos sangrando. Mesmo que ele soubesse que já havia ultrapassado os anos 2000 em uma corrida desesperadora e sem medalha, o novo milênio aconteceria apenas a partir daquele março. Cataclísmico, avassalador, deixaria marcas.

Até mesmo o tempo começara a mudar. O frio viera abraçar a cidade às vezes poluída em cinza cortina, às vezes de tímido e alaranjado sol. Era o prenúncio de que se devia esperar as decisões da natureza. As chuvas, o súbito frio, a vida. A vida era tão precisa e misteriosamente impessoal que não necessitava da ansiedade dele para acontecer. Ela aconteceria com ou sem ele, mas a sua interferência no campo aberto que era a vida era também sua capacidade humana de se transmutar, a si e às realidades. Tudo isso em um mês que, dentro dele, se repetiria sempre.

Ele se apaixonara pela efusividade que sentira ao acordar em março. Efusividade que também lhe doía todas as noites antes de dormir. Mas, resignado, por toda sua vida, estava decidido a viver de março em março.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Mortos e desenterrados – D. Donson

Às vezes a sensação é a de que o tempo passou e nos prendeu em alguma de suas partículas etéreas. Estamos presos ao passado, à pessoa que hoje somos, presos a tudo o que se acumulou e nos transformou “nisso” que agora somos. Como a fotografia de alguém em algum momento de desconforto ou desajuste social, nós procuramos nos recompor “disso” que nos tornamos. É tudo talvez acidental e provisório.

Nessas ocasiões, sinto uma ausência profunda de jardim abandonado. Os quintais mal cuidados de mim mesmo. Nos meus cabelos eu procuro folhas secas, mas não as encontro. Não estou ao natural. Contudo, esse vazio em que sou colocado me deixa sempre límpido como poça de água parada ao mesmo tempo em que me assusta. Nele, é nele que meu reflexo se manifesta, nesse vazio ao mesmo tempo pleno eu me vejo como realmente sou.

E tudo o que de fato ameniza a dor irremediável da existência é o elixir do sono. Prenúncio diário do nosso fim, uma deliciosa experimentação. Para quem está cansado, o sonho maior é não acordar nunca... Até que, com ou sem a anuência dos viventes, esse sonho é realizado.

Grande explosão cósmica. Morrer é assim: fragmentar-se em milhões de partículas, é tornar-se através do tempo, ultrapassando e vencendo o tempo, partículas etéreas. Morrer é um ato sempre muito original e nunca sairá de moda. Sempre trará holofotes de estrela a todas as pessoas que ainda estão vivas.

Mas o sono às vezes não vem. Não são poucas as noites que tento ser amigo de mim mesmo. Tento dormir desapercebidamente, tento fingir naturalidade. Tento me voltar para o futuro como esperança última de contato com a realidade que desejo tocar. O meu mal de nunca tocar na realidade atual e, sim, aguardar a vindoura. O meu mal é estar sempre lá e quase nunca aqui. No ‘aqui’ não sei ser feliz sem me arranhar com as piores garras animais. Sou tão arisco e espantado que para mim mesmo é difícil a convivência.

Em noites como essa, eu costumo, por puro devaneio, pensar em quem já amei e em quem já me amou. Isso salva tanto porque faz-nos acreditar que é perfeitamente possível. O amor é perfeitamente possível e deve estar para acontecer. Ser amado é algo que, sim, já me aconteceu (!!!). Então são com poucos dedos que me dou conta que foram “quase” histórias. E com surpresa percebo que ainda não posso afirmar que é “perfeitamente possível”.

Guardo em segredo o nome de todos os meus mortos, todos os que já amei. Seus corpos ainda pesam sobre mim e o perfume eu ainda sei. Talvez eu ame o que eu sentia por cada um deles – e não eles. Talvez seja melancolia mansa, saudade de amar. Saudade do torpor de me sentir mais vivo, mais bonito, emitindo em ondas eletromagnéticas esse feitiço diabolicamente prazeroso: amar alguém.

Mas ainda há tanto a ser percorrido dentro desse tempo que me resta até que isso se torne atingível. Há uma grande distância dentro de mim, uma distância que me cega a visão, que me impede de me tocar e me entender como sou. Embora eu sinta que caminho esperançosamente para um encontro. Há tempos deixei de ver o quanto já percorri. Avançar é preciso e deixamos nossos pedaços na estrada para chegar a conhecer até onde conseguimos ir. Grandes pedaços essenciais, os outros. Nós os deixamos largados na estrada em prol de uma satisfação egoísta e ao mesmo tempo necessária: ser livre.

Ser livre deixa todos tristes. Como abandonar um bando que amamos e no entanto não fazemos parte? A gestação de um sonho nos obriga a ser livres e abandonar esse bando. É a natureza irremediável das coisas. Não há culpa, é o caráter fatalista de tudo o que existe. Se eu não puder amar de verdade, amarei num sentido mais amplo, amarei apenas o mundo e a minha liberdade vermelha - urgente e reveladora. Isso sim é perfeitamente possível.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Tempo de reinventar verdades - D. Donson

A tarefa de se reinventar é, por vezes, um ato solitário. Sinto em silêncio o peso dos anos que já vivi e a força do futuro à minha frente, a brutalidade com que ele se levanta rompendo a terra em vertigens vulcânicas. Ele me força a ser mais forte do que eu para me render a ele, para realizá-lo, o futuro. Eu, que jamais tive a chance de errar. Eu, que quase sempre pego no último segundo o trem que me leva aonde preciso.

Nesses dias de dezembro sinto minha respiração sôfrega, uma ansiedade que não exprimir senão através de um olhar distante para os prédios da cidade. Madrugadas insones. Eu os olho, mas não os vejo. Eu me olho, mas não me percebo aqui. Não faço parte. Não sou de ninguém, ninguém me precisa --- mas eu. Eu me preciso. E é isso que me leva adiante.

Creio que no fundo haja qualquer coisa de imortal em mim, pois a vida que corre nas minhas veias é de uma insistência irritante. Deve ser o deus ancestral que, certamente, é negro e fosco e forte como meus antepassados. Deus tem a pele negra e fosca, é nessa truculência de vida obrigatória que forjaram meu nascimento. Eu, o intempestivo, o anjo demoníaco, mas por vezes só anjo. Bem e mal, isso não deve parar nunca...

Sobre amores, eu os sei bem. Tenho errado tanto em matéria de amor. A sorte é que esse erro em nada afeta minha missão maior. Sou incumbido de qualquer coisa que envolve o amor, contudo não o banal. O amor de corpos é a separação. O amor de corpos é orvalho que derrete - não, não dura até a manhã seguinte. No entanto, aceito também esse amor, assim como aceito todas as fases da natureza que se reproduz em mim, em nós. A natureza que é o Deus - não há dúvida.

Mas tenho buscado nesses dias, sobretudo, me amar profundamente. Tenho buscado me respeitar mesmo nas minhas mais longínquas falhas. Pois foi das falhas que muitas vezes se levantaram, poderosas, as minhas mais secretas e diabólicas esperanças de vida, de ressurgimento. O dever de continuar lutando. O dever de ir até o fim.

Foi a minha revolta que produziu produziu um homem bom, socialmente aceito. Mas que guarda o seu potencial criminoso a nove chaves, em segredo cabalístico que levarei para o túmulo. Tudo o que eu poderia ser e não ouso contar, mas só na arte terei a chance de ensaiar.

Eu poderia ser tudo para vocês, é realmente lamentável quem não quer receber o amor que eu dou - é do tipo mais puro, colhido em fonte tão rara que sua essência humana e prodigiosa não tem preço. Do tipo que não se ufana. Esse é o amor que tenho para dar. Esse é o amor que poucos querem receber. O que fazer com meu amor em gaveta é outra tarefa para qual me sinto incumbido. E irei aonde for preciso para observar como se opera o amor que tenho para oferecer a algo/alguém que suporte recebê-lo.

Momentos decisivos. Os próximos anos da minha vida cronológica serão decididos nos próximos meses. O país que devo morar, a vida que devo levar, as pessoas que devo encontrar. Digo 'anos de vida cronológica' porque na verdade vivo mais rápido que o relógio, não o acompanho. Devo me transmutar muitas vezes antes de morrer, esse é meu segredo de vida. Eu vivo bem mais do que vivo, mas com a graça espontânea de quem não sabe que para tudo existe um fim.

Vou parar por aqui. Eu preciso aprender a concatenar minhas ideias antes de me colocar frente à máquina. É que minha escrita é por vezes vômito necessário. Preciso escrever para não sufocar de palavras nunca ditas a mim mesmo. Quando as digo, aprendo, aceito, libero. É o que chamo de registar o andamento das coisas. Quem eu sou agora é a mesma pessoa que eu serei amanhã, só que completamente diferente.

Tout de suite dans l'avenir.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Respirar o mundo, inspirar a vida - D. Donson




Eu começara de repente a imaginar que para todas as coisas havia uma voz oculta e somente perceptível aos ouvidos do coração. Um sentido secreto. E se aproximar desse sentido seria a missão de toda uma vida.

Coloquei os patins, fazia um frio agradável e reticente, o último suspiro do inverno que perdia a força. O céu era denso e cinza como uma cortina que tapa o brilho real da noite. O vento entrecortava minha boca como lâminas suaves, chegando apenas como leve brisa no interior da alma assustada.

A música transladava. As experiências de movimentos, pouco a pouco, me enchiam de uma graça que só na infância, só na infância eu havia sentido. Eu era a música, eu era o objeto que se unia ao vento. Não, não contra ele, mas a seu favor, eu me deixava levar para sentir a respiração do mundo, o vento era o hálito fresco de toda a Terra sob a qual eu deslizava.

E eis que, para a minha surpresa, lá estava uma quadra toda vazia, cem metros só meus, para meus compassos, quedas e saltos, como nunca antes, eu tinha a quadra para brincar sozinho.

Era para me fazer feliz que uma quadra toda vazia fora deixada naquele parque aberto até tão tarde.

Era para me fazer feliz que, exausto, eu me deitava naquele chão de cimento gelado onde o céu me fizera tão pequeno, e, em silêncio, eu era capaz de ouvir a respiração do mundo, o balançar das árvores, a eternidade do instante que jamais eu tornaria a viver.

Era solitário sim, não podia compartilhar. Era um prazer novo, o de respirar sozinho o mundo, mas ainda assim um prazer. Com a essencial medida de endeusamento que só os prazeres podem dar ao homem.

Foi então que não suportei mais. Não poderia mais ficar um minuto sequer com o peso daquela felicidade estranha e aguda. A felicidade-sem-motivo começara a me incomodar como um chiclete nos cabelos: não me pertencia.

Foi então que entendi: a moderada tristeza me era um estado primordial, ela me trazia a lucidez necessária para uma vida sóbria, como um café gelado que, se levado a boca, é o prenúncio do fim de uma conversa muito enfadonha com uma pessoa.

Foi então que tirei os patins, cansado, corpo exaurido, passos de uma pessoa que jamais tivera a pretensão de ser algo muito além do que uma pessoa. Missão tão grande e delicada que passa desapercebida pela vida, o dever de ser uma pessoa.

Mas eu sei que dias e noites virão em que eu, novamente, terei que me libertar das amarras e parar... ouvir, sentir a vida que acontece, o ano de 2012, o dia 21 de setembro, isso era eu, isso era o meu tempo que transcorria. Tic, tac, tic, tac. Não havia volta. Outros já haviam tido o seu tempo, mas esse era o meu. O que fazer? Como eternizá-lo?

E nada duraria, nada duraria até o instante seguinte. A sorte, a sorte é que tudo se renova na respiração do mundo, o ciclo de minha vida será exato e inexorável. Eu não viverei nem mais nem menos do que devo, exato como só o é a perfeição da matemática da natureza que eventualmente ouso tocar. E a essa alegria, ninguém pode resistir por muito tempo, ela é tão grandiosa que nos ultrapassa e nos machuca, como ver Deus também deve machucar os olhos. O que nos salva é saber distraidamente que todas as coisas que existem são precisas. 

E absolutamente perfeitas.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Uma carioca em São Paulo - D. Donson


É inexplicável o modo como São Paulo não se dá facilmente a uma pessoa. Basta andar por uma rua movimentada para notar, em rápido relance, que justamente aalienação de seus habitantes é o que sedimenta e alicerça as estruturas subterrâneas dessa megacidade.

Mas afinal, quem começou São Paulo? A própria Esperança. Esperança multifacetada, de rostos agrestes, peles tecnicolors, sonhos despedaçados e, insistentemente, reconstruídos, customizados e reinventados. São Paulo ganha é na persistência. Na persistência é que se ganha São Paulo.

Num desses domingos de ressaca vegetativa, domingos em que, subversivas, as pessoas decidem ir ao parque com os filhos para esquecer por alguns instantes a luta inerente da semana que se inicia, de congestionamentos, do metrô sufocante, da chuva sem guarda-chuva, do homem pedindo moeda, da mediocridade de todos nós que se compraz ao pensar que ‘eu-não-tenho-nada-a-ver-com-isso’, pois foi num desses domingos de lívida distração do cotidiano que conheci uma carioca recém-chegada à metrópole.

Não, não era somente pela beleza, porque havia outras mais bonitas que ela. Também não eram seus bons dentes, a pele porcelanada, os cabelos lisos e soltinhos. Ela tinha dentro de si o lobo dos grandes homens, a ambição e obstinação necessária para vencer a cidade (não na cidade), para escalar os altos muros de que uma São Paulo é feita.

Percebi, com ligeira surpresa que fizeram meus olhos sorrirem, que a altivez da carioca Lala, de 159 centímetros, a levaria muito longe – aonde quisesse. Além de bonita, era esperta como um menino de rua, articulada nas palavras, ela era uma forte. E os fortes são vítimas deliberadas de uma cidade que consome força e talento como São Paulo. Quase autômatos, esses fortes são rapidamente uniformizados e transformados em legítimos paulistas, pouco importa a origem ou a classe.

Entretanto, quem se torna um paulista – e Lala rapidamente o compreendeu – quem se torna um paulista deve aceitar os termos dacidadania, uma concessão muito prática e funcional: só se é paulista enquanto se há força e talento. Uma vez exaurida, a carioca poderia se deleitar sendo uma recatada mineira, uma baiana animada, ou até mesmo ser, pela primeira vez em sua vida, uma carioca, com a resignação mansa e moderada dos que são do Rio.

Lala estava pronta para São Paulo que já começara por lhe oferecer um emprego de categoria numa rede hoteleira de renome. Em outra meia palavra de nossa conversa, que começou quando quase a atropelei de patins, fotografei o relance que me fez entender que ela era o tipo de mulher que jamais seria usada sem que o preço pago fosse o suficiente para a manutenção da sua liberdade de pessoa que jamais dependeria de outras para viver.

Ela era toda sozinha no mundo, com aquela liberdade que muitas vezes aprisiona por não sabermos usar. A carioca de riso fácil perdera os pais muito cedo e tinha duas irmãs as quais a indiferença fez abortar o amor e o laço familiar mal constituído.

--- Como você está se mantendo em São Paulo ?
----Tenho meus colaboradores. Os homens são muito estúpidos e só pensam naquilo. Eu sei que não posso ser prostituta, já que não consigo sair com alguém sem atração. Mas os que me atraem terão que, de um jeito delicado ou não, colaborar comigo. E ainda pensar que sou uma garota de virtudes.

Percebi que se tratada de uma sobrevivente, ela havia sobrevivido à própria vida. Uma forma interessantíssima de sobreviver é deixar os dias escoarem como água pelo ralo, assim, distraidamente, até que o tempo passe, até que as árvores envelheçam, até que pintem os muros da cidade, até que você se torne o que sempre foi e não sabia. Assim aconteceu com esta carioca, ela tomara posse do que sempre fora dela: o direito de existir da forma que quisesse, no lugar que desejasse, com o conforto que, sim, lhe era cabido e merecido.

Naquele momento, eu sabia que não importava o que eu dissesse, ela estava fadada a sofrer todas as conquistas que uma São Paulo é capaz de oferecer a uma pessoa disposta a escalá-la, a cidade. Sofrendo as conquistas, ela se tornaria cad avez mais ávida por novos desafios, novos objetivos que, na realidade, faziam a grande roda da fortuna girar, ao preço de sua alma jovem. Vende-se a alma sem ao menos perceber, esse é o preço real dos que trabalham por si e não para si.

Quando lhe pergunto se ela sente falta da família e dos amigos, ela olha para o café como quem procura lembrar-se de algo. De súbito, uma séria expressão em seu rosto deu forma à resposta que ela criara instantaneamente para si mesma e para mim: às vezes parece que sinto falta de alguma coisa que perdi. Mas uma coisa que perdi e agora já não preciso mais. O meu negócio hoje é viver.

Com o café já frio, ficamos sentados em um silêncio tão remoto que nenhum barulho das crianças ao redor poderia quebrar. O nosso silêncio era uma estátua de gesso ou sal, jamais tocada, apenas vista. Como o silêncio da noite da cidade que agora ela passara a habitar, o silêncio que agora a abraçava como uma mãe embala seu filho nos braços. Ambos de nós éramos anônimos, cada um com uma renúncia, uma queda e uma fortaleza construída com as próprias mãos, com pedras atiradas pela vida. E nessa fortaleza fomos habitar sozinhos, eretos, impassíveis.

São Pauloé tal qual a fortaleza que muitas vezes temos que criar para, nela, com falsa segurança, irmos habitar. Nessa cidade de sol tímido, pessoas anônimas se encontram nos elevadores e supermercados para, no instante seguinte, voltaremao desconhecimento. Muitas vezes os olhares se entrecruzam pela janela de um condomínio, mas, assustadas, as pessoas fecham suas cortinas, como se o perigo fosse o outro. Trata-se do conforto da impessoalidade, de uma fortaleza construída à imagem e semelhança do que precisamos para dormir em paz, para cuidar de uma pessoa muito especial e frágil: nós mesmos.

Saindo do parque, com o rosto suado e a boca seca, a luz do sol daquela tarde de domingo começara a me queimar como uma danação, como um deserto sem horizonte. Eu sabia que estava conectado com aquela carioca. Talvez todos nós, paradoxalmente,estávamos unidos: nós estávamos só. E quem sabe não era esse o caminho da salvação: saber que se está sozinho, precisar do outro, do semelhante, do amor sublime de quem estende uma mão.

Confuso, entrei no ônibus sem olhar para trás, de alguma forma querendo fingir que não vi tão claramente o quanto nós dois estávamos precisados de um abraço gratuito, como o que demos na hora da despedida. Nós éramos estranhos no ninho, em São Paulo , no Brasil, no mundo. E viver a glória íntima de ter sobrevivido e vencido era um galardão que só esta cidade poderia dar. Dentro de mim, com a sofreguidão dos que acolhem o outro para se sentirem acolhido, inocentei a carioca de todas as trapaças que ela confidenciou naquela tarde, todos os riscos que correra e tudo o que fizerapara estar ali.

O meu negócio também era viver. E para mim não havia dúvidas de que ela era, sim, uma garota de virtudes.

domingo, 24 de junho de 2012

Viver sem tempos mortos

A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou pra mim. Provisoriamente.

Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.

Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele.

O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade.


Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.


Trecho da Peça VIVER SEM TEMPOS MORTOS, inspirada na correspondência de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, com Fernanda Montenegro.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Noite espontânea e o crescimento das plantas - D. Donson

Noitezinha, noitezinha, do seu negro véu crescei a flor
Da minha mente tiro o sonho
De que o mundo é puro amor

Do desejo eu vejo o espelho
Do que fui, do que eu sou
A fumaça me faz ver
Todo o ódio que restou

Noitezinha, noitezinha, não se renda para a luz
O teu brilho mais eterno
O próprio escuro é quem conduz

Amanha o dia é de sóbrios
E aos loucos perseguirão
Quem sabe o pouco da verdade
Cria o próprio Deus no coração

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Destino - D. Donson

  Chega a ser uma mutação: meu mundo cai várias vezes e eu me adapto rapidamente aos novos sentimentos. No instante seguinte, sou obrigado a esquecer o que eu sentia, fingir que não existe, até que não existe mais.

Será esse o meu destino: viver de glória em glória e de realidade em realidade. Sem nunca encontrar o meu centro, resignação e novo amanhecer. Desertos e dilúvios, amor e desencanto. Violento e fugaz, eu amo tudo de uma vez, guardo sempre um pouco mais.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Impressões do mundo gay (!?) - D. Donson


Fico impressionado com a superficilidade de alguns faggies.Especialmente os bonitos num primeiro momento (!?). Ficam tão deslumbrados com o pseudo-mundo de "coisas". Não que as "coisas" não sejam boas e importantes, mas elas não são suficientes.

Essas "coisas" (não vou explicar) distanciam ainda mais o caminho de encontro entre uma pessoa e a outra. Faggies, por favor, vamos ter propósitos maiores e mais elevados. Você pode ter um corpo bonito desde que tenha uma alma dentro.

domingo, 15 de abril de 2012

As primeiras dores do amor livre - D. Donson


Deveria haver uma forma de amar sem doer. Amar dói muito, tira o sono, queima-se em febre e em ansiedade. A vontade de unir-se completamente ao outro ser, para sempre, oh, para sempre.

A dor já começa por saber que o "para sempre" não vai exister. A garantia e o dever é o de viver uma vida inteira a cada dia que se nos dá ao lado da pessoa que amamos. E que sequer sabemos porque amamos.

Sabe-se os olhos faiscantes, a vontade de não desagradar, o desejo secreto de oferecer o melhor, de ser espontâneo, de atravessar os becos mais escuros e os vales mais derradeiros só para no fim dizer: puxa, veja pelo que "passamos"! E essa vontade de pronunciar a terceira pessoa do plural é um sinal inequívoco de que tudo está perdido, você está rendido à alegria angustiante do amor.

O "nós" é o golpe último na racionalidade, é quanto realmente começa a doer. Mas não tenho medo da dor, pois nela não sofro. E se meu amor, hora ou outra, com ou sem prévia explicação, não for correspondido, desligo o botão. Sim, dói ainda mais, é algo terrível como um soco no estômago - mas necessário.

Vou até onde o teu olho faiscante me acompanhar. Por que olhos tão brutais e selvagens? Por que essa expressão inumana? acho que você é um ser de outra época, acho que você tem em si o mistério da origem do homem, sua força me assusta e me seduz. Você a desconhece. Essa força, sim, eu amo essa força que vem de você e, às vezes, me é dada.

Breves. Tão breves são os momentos de liberdade solta, nua, inefável. Quando estou com você sinto a possível liberdade, sinto sua aproximação. Eu amo a liberdade sem nome que você possui, aprenderei a ser livre como você, talvez junto com você, até que o vento nos separe. Até que o vento nos separe. Até que um de nós voe. Ou os dois.

domingo, 8 de abril de 2012

Glória íntima - D. Donson


Como explico que tive hoje, finalmente, um dia feliz? Como explico, sem uma palavra que me contradiga, que tive o dia mais feliz da minha vida? Que estranha sensação de egoísmo por ter tido o mundo inteiro de uma pessoa. Não é egoísmo porque também compartilhei o meu inteiro mundo. Mas é uma alegria que entorpece assim como a plenitude e a eternidade também entorpecem. Quer-se completamente mais. Quer-se falar em "sempre". Mas não posso usar o "sempre". Erramos dando um nome, temos que viver essa glória íntima segundo a segundo e anonimamente.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O instinto de liberação - D. Donson

Queria tanto encontrar um meio de enlouquecer. Preciso muito dar um destino para minha loucura guardada.

A sobriedade está, pouco a pouco, me tornando mais humano e menos "eu". Eu não sou tão humano.

E guardo em segredo minha voracidade de expansão, minha vontade de montar em um cavalo e galopar sem freio. Galopar sem freio para... não importa para onde.

A minha loucura é o oposto da radicalidade dessa vida cotidiana e cheia de convenções sociais. Eu ainda quebrarei muitos pratos só para ouvir os estilhaços cortarem o silêncio, a monotonia de alguns domingos meus.

E um dia encontro esse cavalo de que falo. Cavalo que me levará para... para onde não importa. Me levará.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Alegria, a rosa rara - D. Donson


A vida das pessoas é um pouco triste e um pouco solitária. Queria tanto sentir menos a realidade dos outros. E que é a minha também. Queria tanto presentear os outros com o meu melhor, a minha presença. Mas uma alegria para o outro é rosa rara de se dar.

terça-feira, 13 de março de 2012

No light, no light - D. Donson


Perdi o texto. Não bastassem todos os pensamentos que estouram como bolhas de sabão na parede de minha mente, esqueci-me de salvar meu último texto. Isso é sintoma de que não acredito na interferência do que escrevo. Não muda nada. Então por que continuar a ver na palavra a solução última para um mundo todo em si incognoscível , misterioso e cheio de silenciosas eras a subirem por minha alma adentro, alma cada vez mais cansada, oh Deus, cada vez mais cansada?

Eu olho no espelho e o que vejo é a sombra do que fui um dia. Mas as pupilas são as mesmas e conservei a obstinação no olhar, obstinação de quem está prestes a atacar o outro, o animal feroz, o ser excepcional escondido e amarrado para não ferir. Pelo que vejo não aprendi as lições básicas, nem amar eu sabia. Nem amar eu sabia. E tampouco fiz do meu futuro um caminho percorrível por qualquer outro além de mim. Caminho sozinho, com a suave medida da solidão. Uma solidão moderada e totalmente adaptável como a minha própria sombra.

E quantas não foram poucas as vezes que pensei em desistir. O ímpito de continuar. O ímpito de continuar em detrimento de qualquer coisa, em detrimento do amor, do amor e sua tragédia, do amor e seu fiel escudeiro, o ódio!

Ah, Deus, perdoe essa incompreensão de mim mesmo, perdoe eu não querer por um instante a humanidade que me foi dada, perdoe essa minha voz embrutecida de quem não conhece nada senão o grito, o baixo grosso da dor. É porque há a esperança, mas ela não se manifesta para os pobres de espírito como eu. E há a vida, há o amor, há a paz. Paz? Eu que sempre rezei tanto. Não, não tive a minha medida de paz.

Mas não vou morrer sem ser um pouco feliz, sem experimentar de tudo, até o inferno e seus demônios. E não corrigirei uma sílaba da minha oração, por três vezes perdi meu texto, que inferno é esse? Pois que fique este vômito irracional espalhado por esta parede sonsa e obscura de sentidos e que me perdoe também os que estiveram em novidade de espírito. Era somente isso que eu queria. Era somente isso que eu queria.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Rezar para dormir - D. Donson


Como poderia eu, que nunca fui ao analista, me libertar do que eu fui no instante passado e de repente agora percebo que não o sou mais? Bem mais do que isso: não quero ser uma dessas vidas que caminham a esmo sobre a Terra sem nunca se questionar o porque se deve continuar a caminhar. Paro agora para um café, é bem noite e aceitei que terei insônia.

Voltei. Talvez aceitar a minha insônia seja uma forma bem secreta de esperar que o sono venha por si só. Enquanto acordado, penso em palavras. Penso em palavras o tempo todo, no entanto, a palavra correta não me ocorre. A palavra para o que eu sou simplesmente está escondida em algum deserto remoto da minha existência passada ou atual, e é um calvário até o seu encontro. Morro bem mais do que uma vez, morro e renasço concomitantemente.

Tento voltar mais pronto, tento voltar a ter a expressão genuína do meu melhor modo de ser, da minha ânsia por uma novidade de espírito, da descoberta fatídica de que só tenho uma chance, da sabedoria quase sublime de que jamais amarei alguém da forma como amo esse ser que de relance cruzou meu caminho e, de relance novamente, soube que era o meu desafio, era a extensão da minha experiência romântica. Por isso, mudamente, tenho feito orações. Acredito que o silêncio também seja uma voz poderosa, a voz de Deus. E ouvir esse silêncio talvez me leve à compreensão de mim mesmo, desse amor que sinto e muitas vezes me arranha por dentro.

Quem sabe toda vida não esteja mesmo precisando de uma boa dose de silêncio para ouvir o que, na insanidade cotidiana de carros, cavalos e trombones, passa desapercebido. O essencial é um relance só visível ao olho apto a ver a vida que acontece nas minúncias, no orgânico da natureza. E faço disso tudo a minha oração mais primitiva, o meu ritual de catarse, de purificação. Que a palavra traga à existência aquilo que não existe, dentro e fora de mim. Que tudo se esclareça se na loucura obstinada de ser quem eu sou eu resolver sentar um pouco para pensar e sobriamente desistir de ser quem eu era, rumo sempre ao encontro do meu melhor modo de ser.

Peço a quem me lê que me ajude neste caminho. Peço à palavra que me expresse, sem receio de ser lido só pelos que riem de mim, pois esses que me enxovalham são os que mais estão em estado de urgência: eles não vomitam a própria alma para o outro, jamais estarão vulneráveis, jamais se darão sem medo da dor, jamais sentirão esta gratidão ao ser humano ou ao universo por ter sido empurrado para dar um passo adiante.

Oras, à mim, sem religião que me identifique, resta rezar como aprendi. Rezar para este vento da madrugada que sopra na janela, balança as cortinas e esfria o café. Que vela meu sono e me dá a delimitação mais precisa de que sou uma pessoa que carece de outras. Portanto, rezo: me livre de certos abismos da trivial vida de um homem. Faça com que eu ame mais e mais quem está ao meu lado, pois quem sempre cruza um oceano para me ver é quem mais me precisa - e quem mais me importa. Que eu não seja enganado, que eu não engane ninguém. Pois no afã de enganar eu estaria sendo, deliberadamente, um monte intransponível no meu próprio caminho.

O que eu quero é a ousadia de quem se olha no espelho e dá de cara com a dignidade muda de quem não fez concessões, não se vendeu. Eu sou o meu nome, de nascer até morrer... Permita que eu me levante, pois na minha queda toda a humanidade cai também, porém se esse Amor do qual falo existe, ele me ultrapassa e me dilacera mas também me restaura e me diviniza. E só então estarei pronto para dizer "amém".

sábado, 14 de janeiro de 2012

O homem e o seu lobo - D. Donson


Abriu a porta de sua casa com o impulso autômato dos que, pela repetição de uma ato, já não percebem como estão rendidos ao hábito. No seu coração, um pequeno mundo batia, combalido, desesperançoso, mistura de cólera e cansaço. A vida se tornara mais e mais intolerável à medida que ele percebia quão difícil e inacalçável era a obrigação de ser uma "pessoa humana".

E havia tantos que como ele nunca tinham experimentado um momento de verdadeira felicidade. Não me refiro à ânsia desesperadora de quem constantemente tira a felicidade da fonte obscura do prazer. Ele desejava era o momento de tranquilo e sereno encontro consigo mesmo, estava precisado de uma felicidade mansa, aquela moderada paz que vem bem aos poucos, sem alarde ou descontrole, delicada como a brisa da manhã.

Foi mesmo nesta manhã de janeiro que ele tivera a coragem de parar para ouvir. Parar para ouvir os ecos de sua figura interior, a experiência mais assustadora e talvez mais verdadeira e ousada que uma pessoa pode ter. A casa silenciosa, os sussuros taciturnos antes ignorado agora eram encarados com a destreza de arqueiro que atira sua última flecha. O destemor acrescentava ainda mais indiferença à expressão de seus olhos. Era o estado alertivo de quem espera se defender de um ataque.

Sentia-se qual uma carta marcada no jogo da vida. A manhã começara a lhe ofender com raios de sol cada vez mais ardentes, crestando sua máscara de guerra, a máscara da noite de ontem. Foi então que, em meio tão secreta medição, sentiu fome. --- Explendor! Estava salvo. Salvo pela fome! Todos tinham fome, grande ou pequena. Comer era para ele mais que uma ação, era um rito ancestral de purificação. Assim que matava a fome, regozijáva-se com a força de líder tribal que come coração do inimigo, era forte, era intenso, era pura vida original...

A fome lhe dava direto à autotopiedade, já que até Deus disse que 'bem-aventurado são os que sentem fome'. Não era isso? E quando criança fingia não ser maduro o suficiente tentando prolongar a inocência que há muito dexeira de habitar seu espírito. Agora, após uma noite de prazer forçado, mastigada com furor e revolta, mastigava com o ódio primitivo de quem não sabe ao certo aonde é que dói. Se não era dor de fome, era qualquer outra dor em seu âmago.

Talvez fosse a dor primeira da existência de uma pessoa, dor recôndita, antiga e quase nunca questionada. Mais do que isso, era mesmo a dor da descoberta das raízes nebulosas e corruptas da natureza humana. Uma vez posto à frente de seu maior pecado, o de ser o que se era, pensou: "eu sou". Assutado, com respiração arfante, correu como pode. Ele era uma pessoa viva; era também o peso de suas escolhas, tudo tão cruel e irremediável.

Tarde demais! A vida havia lhe rasgado todo com sua lâmina da realidade. Uma vez ferido pela realidade a solução seria lutar contra ela ou ignorá-la. Escolheu não ignorá-la, mas vivê-la de forma bem distraída, sem culpa, sem medo da pergunta, encarando o seu "eu sou" com a mesma truculência de quem ousa perguntar "quem você é".

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Kuschelgeisicht R U


Dear prince,

I don´t know how to start to write about us. I guess I look so corny when the theme is love.

Babe, I would like to know english better then I could dare being poetic. But what I feel for you seems to be the landscape that once I didnt see in anywhere else in the world but in Rio, Búzios.

It was a sunny day and for the first time in a long long hard work period we could enjoy the sea and have some hours off.

That day is unforgettable because was perfect. We was gether, the bliss was in profusion and we, secretly, we knew that we were living an unrepeatable moment.

I know every month that each hour I have with you is unrepeatable and it´s the closest I got to the word "bliss". You are exactly what I found after a long gap of self-understanding.

Obviously, it is scaring. To give what you are to somebody else is not an easy or fast task. It was getting so so so intense, lover, and in those days I was restless thinking that I could lose myself, my individuality or my sense of liberty.

No, lover, when I realized that like an austrian bird very bold you could fly away my heart felt desperate and I did experiment the worse part of loving someone: the lack of the presence, the lack of love.

Babe, I just can´t live or go on without your shining presence. What I say somebody else in love must had said before but I don´t care, it´s myself singing inside in this dark rainy night.

When I said I see great things for us is because now, for the first time, I did dare to say "us".

We are so young now, babe, we come from so different worlds. But I do believe somehow life prepared our meeting in the moment that I most needed.

The way you look to me and smile to me and hug me and feel safe with me. It´s bliss. I know that it´s bliss because we scarcely can be apart from each other.

For you that did show me what "bliss" means. For you that came from lands so so far. I give you my heart and my body - with the soul inside. Every breath that I take, and every moment I am awake... I wanna keep the flame, babe, infinite... it´s vast, it´s beautiful, will last!


Ich liebe dich, mein Kuschelgeisicht!

quarta-feira, 13 de julho de 2011