Eu começara de repente a imaginar que para todas as coisas havia uma voz oculta e somente perceptível aos ouvidos do coração. Um sentido secreto. E se aproximar desse sentido seria a missão de toda uma vida.
Coloquei os
patins, fazia um frio agradável e reticente, o último suspiro do inverno que
perdia a força. O céu era denso e cinza como uma cortina que tapa o brilho real da noite. O vento entrecortava minha boca como
lâminas suaves, chegando apenas como leve brisa no interior da alma assustada.
A música transladava. As experiências de movimentos,
pouco a pouco, me enchiam de uma graça que só na infância, só na infância eu
havia sentido. Eu era a música, eu era o objeto que se unia ao vento. Não, não
contra ele, mas a seu favor, eu me deixava levar para sentir a respiração do
mundo, o vento era o hálito fresco de toda a Terra sob a qual eu deslizava.
E eis que, para a minha surpresa, lá estava uma quadra
toda vazia, cem metros só meus, para meus compassos, quedas e saltos, como
nunca antes, eu tinha a quadra para brincar sozinho.
Era para me fazer feliz que uma quadra toda vazia fora
deixada naquele parque aberto até tão tarde.
Era para me fazer feliz que, exausto, eu me deitava naquele
chão de cimento gelado onde o céu me fizera tão pequeno, e, em silêncio, eu era
capaz de ouvir a respiração do mundo, o balançar das árvores, a eternidade do
instante que jamais eu tornaria a viver.
Era solitário sim, não podia compartilhar. Era um prazer
novo, o de respirar sozinho o mundo, mas ainda assim um prazer. Com a essencial
medida de endeusamento que só os prazeres podem dar ao homem.
Foi então que não suportei mais. Não poderia mais ficar
um minuto sequer com o peso daquela felicidade estranha e aguda. A
felicidade-sem-motivo começara a me incomodar como um chiclete nos cabelos: não
me pertencia.
Foi então que entendi: a moderada tristeza me era um
estado primordial, ela me trazia a lucidez necessária para uma vida sóbria,
como um café gelado que, se levado a boca, é o prenúncio do fim de uma conversa
muito enfadonha com uma pessoa.
Foi então que tirei os patins, cansado, corpo exaurido,
passos de uma pessoa que jamais tivera a pretensão de ser algo muito além do
que uma pessoa. Missão tão grande e delicada que passa desapercebida pela vida,
o dever de ser uma pessoa.
Mas eu sei que dias e noites virão em que eu, novamente,
terei que me libertar das amarras e parar... ouvir, sentir a vida que acontece,
o ano de 2012, o dia 21 de setembro, isso era eu, isso era o meu tempo que transcorria.
Tic, tac, tic, tac. Não havia volta. Outros já haviam tido o seu tempo, mas
esse era o meu. O que fazer? Como eternizá-lo?
E nada duraria, nada duraria até o instante seguinte. A
sorte, a sorte é que tudo se renova na respiração do mundo, o ciclo de minha
vida será exato e inexorável. Eu não viverei nem mais nem menos do que devo,
exato como só o é a perfeição da matemática da natureza que eventualmente ouso
tocar. E a essa alegria, ninguém pode resistir por muito tempo, ela é tão
grandiosa que nos ultrapassa e nos machuca, como ver Deus também deve machucar
os olhos. O que nos salva é saber distraidamente que todas as coisas que
existem são precisas.
E absolutamente perfeitas.
2 comentários:
Bom volver ao seu blog, Daniel. Estou treinando a patinar (minha prima me fez comprar patins para andar com ela): caindo e me levantando. É preciso.
Belo texto.
Abraços: com paz
Thiago, você é um querido e sempre muito bem vindo. um abração em vc.
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