sábado, 14 de janeiro de 2012

O homem e o seu lobo - D. Donson


Abriu a porta de sua casa com o impulso autômato dos que, pela repetição de uma ato, já não percebem como estão rendidos ao hábito. No seu coração, um pequeno mundo batia, combalido, desesperançoso, mistura de cólera e cansaço. A vida se tornara mais e mais intolerável à medida que ele percebia quão difícil e inacalçável era a obrigação de ser uma "pessoa humana".

E havia tantos que como ele nunca tinham experimentado um momento de verdadeira felicidade. Não me refiro à ânsia desesperadora de quem constantemente tira a felicidade da fonte obscura do prazer. Ele desejava era o momento de tranquilo e sereno encontro consigo mesmo, estava precisado de uma felicidade mansa, aquela moderada paz que vem bem aos poucos, sem alarde ou descontrole, delicada como a brisa da manhã.

Foi mesmo nesta manhã de janeiro que ele tivera a coragem de parar para ouvir. Parar para ouvir os ecos de sua figura interior, a experiência mais assustadora e talvez mais verdadeira e ousada que uma pessoa pode ter. A casa silenciosa, os sussuros taciturnos antes ignorado agora eram encarados com a destreza de arqueiro que atira sua última flecha. O destemor acrescentava ainda mais indiferença à expressão de seus olhos. Era o estado alertivo de quem espera se defender de um ataque.

Sentia-se qual uma carta marcada no jogo da vida. A manhã começara a lhe ofender com raios de sol cada vez mais ardentes, crestando sua máscara de guerra, a máscara da noite de ontem. Foi então que, em meio tão secreta medição, sentiu fome. --- Explendor! Estava salvo. Salvo pela fome! Todos tinham fome, grande ou pequena. Comer era para ele mais que uma ação, era um rito ancestral de purificação. Assim que matava a fome, regozijáva-se com a força de líder tribal que come coração do inimigo, era forte, era intenso, era pura vida original...

A fome lhe dava direto à autotopiedade, já que até Deus disse que 'bem-aventurado são os que sentem fome'. Não era isso? E quando criança fingia não ser maduro o suficiente tentando prolongar a inocência que há muito dexeira de habitar seu espírito. Agora, após uma noite de prazer forçado, mastigada com furor e revolta, mastigava com o ódio primitivo de quem não sabe ao certo aonde é que dói. Se não era dor de fome, era qualquer outra dor em seu âmago.

Talvez fosse a dor primeira da existência de uma pessoa, dor recôndita, antiga e quase nunca questionada. Mais do que isso, era mesmo a dor da descoberta das raízes nebulosas e corruptas da natureza humana. Uma vez posto à frente de seu maior pecado, o de ser o que se era, pensou: "eu sou". Assutado, com respiração arfante, correu como pode. Ele era uma pessoa viva; era também o peso de suas escolhas, tudo tão cruel e irremediável.

Tarde demais! A vida havia lhe rasgado todo com sua lâmina da realidade. Uma vez ferido pela realidade a solução seria lutar contra ela ou ignorá-la. Escolheu não ignorá-la, mas vivê-la de forma bem distraída, sem culpa, sem medo da pergunta, encarando o seu "eu sou" com a mesma truculência de quem ousa perguntar "quem você é".

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