quarta-feira, 19 de maio de 2010

Unsent - D. Donson


Querida Clarice,

Estou triste. Um êxtase me vem pelo fato de não caber na vida dos dias. Estou atravessando uma fase de silenciosa tensão, de medo, de incerteza. Minha vida, ao que parece, oscila mais que uma montanha russa. Minhas felicidades duram átimos de segundo. O mesmo tempo que o pneu de um carro em alta velocidade demora para tocar o asfalto e depois gira para novamente tocá-lo. Sinto que estou perdendo tempo, sou acometido de um mal-estar constante e instintivo. O mesmo mal-estar que se sente quando uma pessoa perdida em uma grande cidade toma a linha errada do metro ou do ônibus.

Como sabe, sou uma pessoa que sente tédio facilmente. E para me manter aceso é necessário sempre uma novidade que me faça superar uma adversidade. Preciso de jogo, preciso de riscos. E tudo está tão silencioso, tão mórbido e obscuro. Não sei se estou no caminho certo, mas sei que não encontrei o que estive a vida toda procurando. Talvez eu nunca encontre. Sei que não estou sendo específico, mas às vezes o que nos resta é apelar para os sons das palavras para tentar externar algo que sequer é exprimível.

Nesse momento toca Flinch. Assisti vários episódios de seriados e o som da televisão do outro quarto me incomoda. Aqui, acredito, não é meu lugar. Por Deus, Clarice, eu não encontrei aquela sombra com reflexos de luz entre as árvores, onde finalmente repousaríamos e nos descontrairíamos. Os meus sonhos parecem serem feitos de brisa e eu não sei se peço muito.

Estou relendo A Hora da Estrela e me vejo em tantas cenas, Clarice. Dia destes, também eu tive um encontro com a minha miséria ao olhar no pedaço de um espelho. Juro que senti aquela incompetência para viver tão inerente à Macabéa. Então pensei: também eu. Eu achei que viver fosse coisa fácil e que ser feliz fosse obrigação nossa, mas não é. Estou em um emprego monótono, estou em uma faculdade em decadência, estou sem grana para realizar meus projetos, estou sem grandes novidades amorosas, estou querendo partir, estou querendo respostas que apontem para Deus, estou querendo mudar, estou com saudades do que se foi, estou pronto para dormir mais uma noite.

No fim, Clarice, se as coisas não saírem como planejei terei que descobrir novos caminhos. Pois, diferente de Macabéa, eu não vou ficar com o que restou de mim. Antes, irei procurar me refazer, buscar forças outras: a vida sempre acaba em algum lugar. Só preciso me concentrar em mim para não esquecer quem eu sou e para onde vou. Clarice, não tem sido uma tarefa fácil, mas já obtive progressos significativos, embora ainda continue não entendendo as negras raízes de nossa liberdade.

O dia que experimentar a liberdade por completo serei como o cavalo novo de que você falou. Ninguém mais me colocará um nome, uma classe, um código, uma cor. O dia que eu alcançar os campos verdejantes eu correrei tão grato ao mundo e a Deus que eu pensarei: o que não nos mata, nos liberta. E jamais voltarei a pensar em sair pela porta dos fundos, antes tomarei para mim tudo o que é meu. Serei dono de mim mesmo e todas as estrelas do céu de abril serão minhas testemunhas.

Porque o mundo reconhece que fazemos parte dele. E eu sempre quis fazer parte de alguma coisa: meu coração é quase novo e eu também sou quase novo. Poderia desistir, mas preciso continuar a me respeitar. E esta é apenas uma noite ruim, não sei o que me espera amanhã. Que o mundo não se escandalize, Clarice, mas insistirei mais um pouco.

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