Ela era magra, negra fosca, talvez tivesse 52 anos e cerca de um metro e oitenta de altura. Não poderia dizer o porquê, mas desde a primeira vez que a vi na calçada uma súbita suspensão de realidades me tomou, eu sabia exatamente quem ela era: agora e antes. Com seu carrinho compacto cheio de ferramentas de limpeza, estava sempre apressada cruzando os quarteirões da Avenida Paulista, de olho no seu pequeno relógio dourado.
Não houve ocasião para conversarmos. Já entendi desde cedo que se tratava de uma mulher muito ocupada, não poderia interrompê-la nos seus dez minutos de intervalo entre um prédio e outro. Em seu uniforme branco e azul, impecavelmente alinhado, lia-se nas costas: “Limpeza Veloz, limpamos escritórios em apenas 50 minutos”.
Não sei que espécie de arrebatamento me fez enxergar essa mulher com uma delicadeza primeira que mesmo ela desconhecia. A grande precisão com que organizava seus espanadores, panos e desinfetantes, ela era esmerada, diligente e conhecia muito bem seu trabalho. Ninguém o faria melhor que ela. O que quer que ela se propusesse na vida, era o tipo de pessoa que “ninguém faria melhor”. Era o que se pode chamar de uma vida incumbida.
Sua postura era ereta, o andar, decido. Esboçava cerca altivez involuntária que somente rainhas possuem. Então seria isso? Seria ela uma rainha africana que, ao caminhar com seus olhos graúdos e cinzas erguidos para uma linha imaginária acima de seu corpo, fazia com que, nós, seus súditos, reconhecessem sua autoridade e, por isso mesmo, se prostrassem diante de sua grandeza e magnificência? Encostado no tronco de uma árvore, eu a observada em cada meticuloso gesto, estarrecido por essa espécie de benevolência que temos diante dos santos ou de artistas que admiramos muito.
Bastava então telefonar para receber um das meninas da “Limpeza Veloz”. Contudo se eu ligasse, chamaria especificamente ela, ela que não sei o nome. Por vezes ela estava em turma. Duas ou três colegas que, como formiguinhas, se dividiam agilmente entre os quarteirões da Avenida Paulista. Mas nenhuma das outras possuía essa venerável nobreza de rainha nata como ela.
O cabelo crespo estava sempre alinhado em tranças na raiz, era tão ousada que usava um baton cor de café. Tamanha era sua vaidade e autoestima que nas bochechas secas nota-se também passava um pouco de batom vermelho, conferindo desnecessário rubor a sua cara preta e limpa. O corpo era reto e magro, uma chefe tribal em pele de mulher cotidiana e anônima. Ela esgueirava-se entre os executivos com uma dignidade que os ultrapassava. Ela caminhava, na verdade, dentro de seu mundo feliz e de imperceptível graça, com a gentileza e bem-aventurança que nessa cidade (meus Deus!) era o que mais faltava.
A nossa terra era seca e as bocas sem saliva se misturavam na multidão com aquela atmosfera de estresse, de impaciência, de carreiras, de coisas mais importantes, mas ela era toda úmida e alegre e despreocupada. Carregava consigo sua garrafinha de água e seus braços negros brilhavam no sol. Houve um dia que a vi sorrindo com suas colegas. Dentes mais brancos no mundo não deveria haver. Ela parecia estar em paz com sua vida, esse era seu segredo: estava satisfeita. Resignação e a falta de ambição são coisas absolutamente distintas. Resignação é uma forma de paz e essa a fazia flutuar com seu carinho cheio de produtos mágicos.
Sobre o que ela meditava a cada 50 minutos é-me impossível de contar. Entretanto sei que em sua cabecinha de mulher ela tinha mil ideias de vida, de sociedade, de amor e perdão. E de essencialidade divina também. Sabia como ninguém que a desorganização exterior das pessoas, tanto no trabalho como em casa, era sintoma do caos interior que guardavam em segredo inviolável para si mesmos. Para ela, ser livre, ser básica e ser organizada, eram coisas tão óbvias que nem mencionava em seu currículo.
Nossos olhos se cruzaram uma única vez. Foi então que eu soube. Seu trabalho a fazia se sentir como uma pessoa incumbida. A minha inveja de pessoas incumbidas. Justo eu que estive a vida toda procurando uma incumbência real e legítima, que revelasse talvez... talvez uma vocação. E a altiva limpadora veloz a me mostrar como se produz uma vida feliz, caminhando como ela, livre como ela, básica como ela. Ela, que nada a ninguém devia e ninguém a ela. Sozinha, satisfeita e alegre.
Como num torpor de ambição, eu quis me unir ao sentimento dela. Será que também eu teria habilidade ou competência para ser um “limpador veloz”? Eu estava prostrado diante da rainha, poderia começar limpando pequenas coisas, atento aos detalhes e ao indispensável rigor com que ela olharia os objetos. Até que ela desapareceu na sacada de um prédio. Não trocamos contato. Não trocamos nada. Talvez voltasse a vê-la como em outras vezes. Mas o que importa é ela me deu, generosamente e vagarosamente, um exemplo. Ela me deu talvez a maior de todas as tarefas de uma vida: achar uma incumbência.
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
quinta-feira, 9 de maio de 2013
Acerca dos desafios alcançados e das observações banais – D. Donson
Experimentar esses momentos deliciosos depois de uma longa caminha de labor e ansiedade, sem dúvida, vale uma vida inteira. Quem sabe essa súbita claridade interior é o que se convencionou , através dos tempos, ser chamado de... de “paz”. Estar em paz com sua própria guerra, um modo excitante de ser feliz.
E para que essa paz chegue é preciso deixar tanta coisa para trás, sentimentos que não nos servem mais. É preciso contar também com um pouco de sorte, com a ajuda de quem, muitas vezes, menos esperamos. E eu garanto que a melhor sensação de um ser humano, a mais elevada, é um dia precisar de ajuda e ser ajudado. Isso é o que nos torna pessoas!
Estou tão iluminado por meus planos terem dado certo. Você começa a se sentir vazio, busca uma ideia nova, a ideia ocorre de repente, vira um sonho, que se torna um projeto e realizar o novo projeto se torna algo mais importante inclusive que você mesmo.
Gostaria de agradecer a todos que de alguma forma participaram, os franceses que conheci, as pessoas brilhantes que sempre estiveram perto de mim. Também agradeço quem não acreditou em mim, quem se tornou algum desafeto. Vocês me motivam a trazer à existência esse êxtase que agora estou imerso.
Embora eu esteja deitado nesse jardim, dentro do centro da cidade, com esse reflexos de luz por entre as árvores, por dentro estou dançando. Uma dança africana da alegria original, do êxtase primeiro, consciência pura submergindo todas as minhas inseguranças. Eu queria estar assim para sempre, mas sei que não vai durar.
O importante é prosseguir, distraidamente, rumo a esses deliciosos momentos. Ao encontro de si mesmo, sempre. E esse vento maravilhoso, esse jardim, disso sentirei falta. Há um caminho para ser livre, mas ele está oculto dentro de nós. Atingir essa consciência sobre a estranha beleza do mundo é o grande desafio de toda uma vida.
L’eternité est l’état des choses en ce moment.
quarta-feira, 20 de março de 2013
Março, um mês para se morrer de vida - D. Donson
De repente, era março. Com suas nodosas raízes, ele vira março se levantar diante de si como uma grande árvore de outono. Naquele mês, ele estava de uma atenção muda, ansiedade controlada, sabia que algo estava para nascer ou morrer. E se fosse uma morte, seria das mais acidentais e tolas. Mas alguma coisa aconteceria antes do dia 31, dizia sua alma que nem em sono podia descansar de forma despojada e livre de inquietações. Como aquela danação de estiagem que antecede a vinda de uma grande chuva, há tempos esperada no sertão que era o seu próprio mundo. Esse alívio, esse contentamento manso, esse ato glorioso de tirar as sandálias e descansar os pés, isso tudo em um mês tão discreto e sem grandes anunciações.
Março não demorara como ele havia pensado tempos antes. Março levantara a sua lâmina da justiça – a mesma que certa cartomante lhe vaticinara – com a urgência sobre-humana de quem está escapando da prisão. Março era todo místico, um mês para se acreditar em tudo, todos os portais pareciam abertos. Dentro de um silêncio interior prazeroso, ele deixara-se perder em devaneios cada vez mais ousados em um mês de tantas possibilidades, tão atroz quanto perplexamente revelador.
Março era para todas as fés se unirem, era para superar a cotidiana mediocridade espiritual. Ninguém que se julguesse um pouquinho sensível deixaria de notar a atmosfera geral de mudanças que aquele março parecia trazer. Mas era algo para se viver solitariamente e fingir desconhecimento. Como uma graça prodigiosa que se eleva de súbito em nosso espírito, como um feche de luz em quarto há dias fechado e umedecido. Lembrou-se então que, fossem quais fossem os resultados das sementes que plantara, março havia chegado com suas chuvas torrenciais – nada seria como antes. As chuvas fariam brotar o que ele havia semeado ou afogariam de vez as verdes folhas de sua frágil esperança, seus esforços de ampliação de vida.
Apenas quem havia captado certo relance saberia que março era de surpresas irremediáveis, um mês em que cada dia pulsava acelerado, como coração de atleta em maratona olímpica. E quem o amava, também sentia esses batimentos. Esse mês que, aos poucos, foi se tornando tão difícil e duro... Um monte a ser escalado com joelhos sangrando. Mesmo que ele soubesse que já havia ultrapassado os anos 2000 em uma corrida desesperadora e sem medalha, o novo milênio aconteceria apenas a partir daquele março. Cataclísmico, avassalador, deixaria marcas.
Até mesmo o tempo começara a mudar. O frio viera abraçar a cidade às vezes poluída em cinza cortina, às vezes de tímido e alaranjado sol. Era o prenúncio de que se devia esperar as decisões da natureza. As chuvas, o súbito frio, a vida. A vida era tão precisa e misteriosamente impessoal que não necessitava da ansiedade dele para acontecer. Ela aconteceria com ou sem ele, mas a sua interferência no campo aberto que era a vida era também sua capacidade humana de se transmutar, a si e às realidades. Tudo isso em um mês que, dentro dele, se repetiria sempre.
Ele se apaixonara pela efusividade que sentira ao acordar em março. Efusividade que também lhe doía todas as noites antes de dormir. Mas, resignado, por toda sua vida, estava decidido a viver de março em março.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Mortos e desenterrados – D. Donson
Às vezes a sensação é a de que o tempo passou e nos prendeu em alguma de suas partículas etéreas. Estamos presos ao passado, à pessoa que hoje somos, presos a tudo o que se acumulou e nos transformou “nisso” que agora somos. Como a fotografia de alguém em algum momento de desconforto ou desajuste social, nós procuramos nos recompor “disso” que nos tornamos. É tudo talvez acidental e provisório.
Nessas ocasiões, sinto uma ausência profunda de jardim abandonado. Os quintais mal cuidados de mim mesmo. Nos meus cabelos eu procuro folhas secas, mas não as encontro. Não estou ao natural. Contudo, esse vazio em que sou colocado me deixa sempre límpido como poça de água parada ao mesmo tempo em que me assusta. Nele, é nele que meu reflexo se manifesta, nesse vazio ao mesmo tempo pleno eu me vejo como realmente sou.
E tudo o que de fato ameniza a dor irremediável da existência é o elixir do sono. Prenúncio diário do nosso fim, uma deliciosa experimentação. Para quem está cansado, o sonho maior é não acordar nunca... Até que, com ou sem a anuência dos viventes, esse sonho é realizado.
Grande explosão cósmica. Morrer é assim: fragmentar-se em milhões de partículas, é tornar-se através do tempo, ultrapassando e vencendo o tempo, partículas etéreas. Morrer é um ato sempre muito original e nunca sairá de moda. Sempre trará holofotes de estrela a todas as pessoas que ainda estão vivas.
Mas o sono às vezes não vem. Não são poucas as noites que tento ser amigo de mim mesmo. Tento dormir desapercebidamente, tento fingir naturalidade. Tento me voltar para o futuro como esperança última de contato com a realidade que desejo tocar. O meu mal de nunca tocar na realidade atual e, sim, aguardar a vindoura. O meu mal é estar sempre lá e quase nunca aqui. No ‘aqui’ não sei ser feliz sem me arranhar com as piores garras animais. Sou tão arisco e espantado que para mim mesmo é difícil a convivência.
Em noites como essa, eu costumo, por puro devaneio, pensar em quem já amei e em quem já me amou. Isso salva tanto porque faz-nos acreditar que é perfeitamente possível. O amor é perfeitamente possível e deve estar para acontecer. Ser amado é algo que, sim, já me aconteceu (!!!). Então são com poucos dedos que me dou conta que foram “quase” histórias. E com surpresa percebo que ainda não posso afirmar que é “perfeitamente possível”.
Guardo em segredo o nome de todos os meus mortos, todos os que já amei. Seus corpos ainda pesam sobre mim e o perfume eu ainda sei. Talvez eu ame o que eu sentia por cada um deles – e não eles. Talvez seja melancolia mansa, saudade de amar. Saudade do torpor de me sentir mais vivo, mais bonito, emitindo em ondas eletromagnéticas esse feitiço diabolicamente prazeroso: amar alguém.
Mas ainda há tanto a ser percorrido dentro desse tempo que me resta até que isso se torne atingível. Há uma grande distância dentro de mim, uma distância que me cega a visão, que me impede de me tocar e me entender como sou. Embora eu sinta que caminho esperançosamente para um encontro. Há tempos deixei de ver o quanto já percorri. Avançar é preciso e deixamos nossos pedaços na estrada para chegar a conhecer até onde conseguimos ir. Grandes pedaços essenciais, os outros. Nós os deixamos largados na estrada em prol de uma satisfação egoísta e ao mesmo tempo necessária: ser livre.
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