segunda-feira, 10 de março de 2008

O que foi feito de Vera - Elis Regina

O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida, o que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás
Falo assim sem saudade, falo assim por saber
Se muito vale o já feito, mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor
prosseguir
Falo assim sem tristeza, falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer
Nós iremos crescer, outros outubros virão
Outras manhãs, plenas de sol e de luz
Alertem todos alarmas que o homem que eu era
voltou
A tribo toda reunida, ração dividida ao sol
E nossa Vera Cruz, quando o descanso era luta pelo
pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé
E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz
Hoje essa vida só cabe na palma da minha paixão
Devera nunca se acabe, abelha fazendo o seu mel
No pranto que criei, nem vá dormir como pedra e
esquecer
O que foi feito de nós

Legião Urbana - Monte Castelo

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos
dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

quinta-feira, 6 de março de 2008

O grito - Trecho Clarice Lispector

Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar vivo, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.(...)Tudo se resumia ferozmente em nunca dar o primeiro grito - um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida. Se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que começariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência - a existência de quê? A existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do mundo para mim. (...) Eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim - eu sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco na parede - sou cada pedaço infernal de mim - a vida em mim é tão insistente que se me partirem - como uma largatixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humano, e nunca propriamente morrerei.

Meus sonhos - Trecho Clarice Lispector

Meus sonhos podem ser guardados em caixa de fósforos. Grandes ou pequenos, são meus. Sem receio de ser egoísta, quem sabe um dia, num momento normalíssimo do cotidiano, eu risque todos os fósforos. Eu odeio quando sou ritualístico e repito, cotidianamente, os mesmos sonhos. Odeio a espera. Prefiro o imediatismo da vida. Guardo meus sonhos em caixa de fósforos porque tenho a certeza de que irei queimá-los um dia. Tartarugas são as rainhas da frivolidade. E vivem 120 anos. São animais desprovidos de qualquer resquício de sistema límbico. São efêmeras. Andei pensando em tartarugas... São mocinhas sábias porque não sonham

quarta-feira, 5 de março de 2008

O Nome da Flor - Daniel Donson

Era uma como muitas, anônima por natureza
Costumava viver apesar de. Apesar de, acordava às 6:00,
Apesar de, cuidava dos filhos, Apesar de - respirava.
Mulher da lida, no corpo havia fadiga.
Os olhos denunciavam que ela não sabia gritar.
Mulher de Atenas, a típica Helena, que dá e nada pede,
Cobiça a liberdade na intimidade de seu leito.
Seu marido a machucava, ora com tapas, ora com socos.
Mas nada doía mais do que quando ele subia em cima dela.
Ele queria fazer o tal "negócio", logo depois dormia.
De modo que ela morria simbolicamente todos os dias.
E ele, vivia por ser charlatão, porque tirou dela seu senso.
E o senso era sua singular estado de estar-no-mundo.
Até que do âmago dela nasceu o grito.
E o grito desencadeou a fuga.
E ela se viu como quem, de súbito, entende um truque.
Achou que poderia pensar sozinha, se ninguém estivesse olhando.
Não era inteligente, não era bela. Já era velha.
Mas tinha o coração selvagem de um potro novo.
Pegou seus filhos, em tenra idade, e fugiu para a grande cidade.
Nas cozinhas de restaurante aprendeu a se suster.
Não era civilizada, mas sabia rezar. Aprendeu a se virar.
Lutou dentro da selva de pedras em que passou a morar.
Descobriu que se bastava, que tinha um começo, um meio e...
Não vivia mais apesar de - agora era plena, sentia o gosto.
Não provou do amor conjugal, mas amou ser uma vez livre.
Livre feito a borboleta branca de seu jardim.
Sim, agora ela cultivava flores.
Assim, ela deixou de ser anônima.
E quando se olhava no espelho, chamava-se por um nome.
Nome que a todos fez conhecer.
Então, já com os filhos crescidos, observou os anos idos...
As dores e dissabores.
Sentiu uma força irradiar de dentro de si - era sangue.
Eram pulsações de felicidade, de gozo. Tinha um nome e tinha filhos!
Também não era solitária porque tinha amigos.
Como estava farta de vida, logo partiu.
E como a primavera, ela se deixou cortar,
Para poder voltar ainda mais forte.
De modo que ela nunca propriamente morrerá.
Quem experimenta liberdade, não costuma morrer.
Apenas deixa de existir por sucessivos momentos brancos.
Logo emerge para conflagrar os renovos da estação.